Novamente, sobre a fábula do orgasmo feminino: é símbolo da nossa sociedade normalizar a falta de orgasmo feminino como algo natural e aceitável, como se “as coisas fossem assim mesmo”, enquanto o homem goza sem nenhuma preocupação com o desejo feminino.
Todo o desejo da sociedade só leva em conta — e é programado para — a satisfação masculina.
Após assistir 40 minutos de Anora, ganhador do Oscar, e sobre o qual pretendo escrever a respeito depois, ficou claro que toda a construção social é feita levando em conta o desejo masculino.
Logo no início, temos um travelling com uma música eletrônica farota, mostrando o clube, garotas de programa usando trajes da predileção masculina, em poses que são eróticas, mas não sensuais.
A prostituição e a nudez, quando explícitas e direcionadas apenas ao desejo masculino, são vulgares e, por isso, não podem ser sensuais. A sensualidade é sugerida, tácita — não explícita.
A erotização das garotas de programa é tão explícita que passa a ser natural, e chega a não ser nem mais erótica, muito menos sensual. É difícil entender um homem “invulgar” se excitar vendo aquilo.
A verdadeira erotização seria ver uma garota “normal”, não prostituta, com uma excitação sexual tão grande que ela mesma desejasse, de bom grado, ser uma prostituta — não apenas desempenhar o papel. Inclusive, vestindo-se como tal, apesar de ser a mais santa e delicada, e fazendo isso não só pelo desejo do homem, mas pelo seu próprio.
Agora, o nerd milionário, que personifica o desejo masculino, mete freneticamente em Anora como se ela fosse uma boneca inflável sem desejo, apenas em prol do seu próprio prazer, achando que aquilo é excitante.
Há, porém, uma cena em que Anora para e diz que, se ele fosse mais devagar (e então o ensina a fricção e o movimento), seria mais agradável para ambos. Sexo e orgasmo feminino são mais sobre sensações, movimentos e psicologia do que sobre força.
A sexóloga com quem aprendo muito diz que muitas mulheres não chegam ao orgasmo porque não se masturbam. Realmente, as mulheres que chegam ao orgasmo — ou, melhor dizendo, que não mentem sobre chegar — são justamente aquelas que não têm vergonha do próprio sexo e se conhecem a ponto de se masturbar.
Ela vai além e fala sobre a necessidade de a mulher sentir seus próprios fluidos, andar sem calcinha para se conectar consigo mesma, até mesmo sentir seu próprio muco. Eu já acho isso exagerado, mas ela usou um bom argumento: para colocar um pau na boca, muitas não reclamam; mas para sentir seu próprio fluido, em busca de conexão consigo mesmas, reclamam?
É violento o movimento de naturalização de que é “normal” a mulher sentir dor e não gozar no sexo. Ora, poderia ser natural se o prazer fosse consensual e se elas também gozassem.
Mas muito da ausência de orgasmo feminino não é culpa apenas do homem — é também delas mesmas, que naturalizam o desejo sexual masculino e se colocam como objeto dele.
As mulheres bonitas, como as amigas da pessoa que julgo ou julgava amar, observo que todas se contentam, mesmo estando no ápice da cadeia social, com parceiros ridículos, banais, feios e anodinos.
Como se chega ao orgasmo com um homem burro, feio, barrigudo e de mau gosto? Ainda não inventaram uma máquina capaz de fazer o dinheiro gerar orgasmos.