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Estudando neurociência — uma disciplina relativamente nova, dos séculos XIX e XX — percebo que ela é uma poderosa via de compreensão do homem. E torna ainda mais admirável o fato de Nietzsche ter pensado o que pensou sem o substrato dessa matéria e dos conhecimentos atuais. Mais admirável ainda é Spinoza, a quem Nietzsche chama de “seu irmão”.
Uma das coisas que a neurociência — o materialismo erguido como ciência — demonstra com clareza é que o livre-arbítrio e o “eu” são fábulas. Não existe no cérebro um “homenzinho” que controla nossas ações de forma livre. Tudo que há são sinapses cerebrais moldadas por estímulos do meio ambiente, que configuram nosso comportamento com base em reforços e punições.
E nem mesmo um eu fixo, imutável.
Hoje mesmo, andando, vi uma menina que, na adolescência, achava legal exibir com orgulho sua roupa íntima diminuta. Hoje, mais velha e recochuda, de mãos dadas com um homem condizente com sua aparência acanhada, assumiu — simplesmente pela feição dos seus gestos — um ar de respeitabilidade.
Ela, que mais jovem, até inconscientemente, moldou meu desejo e meu gosto estético até os dias de hoje.
E agora, sua aparência atual destoa violentamente da minha percepção de beleza.
Agora me diga: quem é o eu real dela?
Aquela garota ousada e sexy?
Ou essa mulher recochuda e respeitável que provavelmente usa calcinha bege?
Algumas pessoas precisam acreditar em grandes narrativas para viver. Ou em fábulas. Eu, ao contrário, encontro liberdade justamente na fluidez do ser, na liberdade de não acreditar em nada. De viver sem muletas. Isso, pra mim, é a verdadeira liberdade.
Não que eu acredite no super-homem nietzscheano, capaz de viver completamente sem muletas. Mas pelo menos das muletas metafísicas, das macroestruturas, eu posso abrir mão. Posso viver com as micro: estética, arte, cultura, hobbies. Ainda assim, é difícil. A própria gramática pressupõe um mundo de entes e substâncias.
Como disse Kant: se não existem juízos sintéticos a priori, se Deus não existe, como dizia Dostoievski, então tudo seria permitido. E tudo se tornaria uma questão de perspectivismo.
A razão, então, seria a capacidade do homem de encontrar esses juízos que independem da experiência e que servem para todos — o que Kant traduzia como o imperativo categórico. Mas talvez a verdadeira moral seja amoral — não imoral. Amoral porque não pressupõe moral alguma.
Bom e ruim seriam apenas questões estéticas daquilo que aumenta ou diminui nosso poder. Nosso bem-estar. Nossa capacidade de agir.
E então chegamos à ideia: a cultura é coisa de mau caráter.
Foucault, embora claramente influenciado por Nietzsche, raramente o citava de forma direta. Não obstante, criou uma obra à parte da do alemão. Uma de suas falas mais significativas, aliás, foi dada numa palestra no Brasil — e depois transformada em livro.
Fora essa exceção e alguns fragmentos jurídicos, Foucault raramente falava abertamente de Nietzsche. E Nietzsche provavelmente entenderia isso: ele mesmo dizia que “se retribui mal a um mestre permanecendo para sempre seu discípulo”.
Da mesma forma sou eu. Todos sabem da dívida de gratidão que tenho com o professor Clóvis. A ele devo boa parte do meu parco conhecimento. Mas raramente o cito ou atribuo os méritos da minha evolução a ele.
E se, por acaso — por uma falha da matriz — eu me tornasse algo que nunca busquei, que é ser minimamente reconhecido, aí sim que eu jamais falaria dele.
O mesmo se aplica a Eslem, com quem aprendi psicologia de forma mais significativa. Seu modo de ensinar me proporcionou insights que internalizaram em mim o conhecimento da neurociência prática, baseada em evidências.
E ao invés de agradecer, cometo o disparate de até criticar o português dele, sua falta de erudição, de bom gosto. De alguém que não lê literatura, desconhece cinema, poesia… e escuta Eminem.
É nesse sentido que digo: cultura é coisa de mau caráter.
Porque ela se apropria do conhecimento dos outros sem copyright, e não leva em consideração o juízo moral. Cultura é roubo sofisticado. Com assinatura e pose.