Um filme dentro de um filme que quebra a quarta barreira para discutir a própria linguagem do cinema, o cinema e a sociedade. O resultado foi muito original — embora não seja algo novo na história da sétima arte.
Se nesse momento você está pensando “sim, tenho isso no Deadpool”, eu tenho pena da sua pobre alma. Deadpool é o que o algoritmo entendeu de “quebra da quarta parede”. Jean-Luc Godard, na sua estreia com Acossado, já fazia personagens que sabiam que estavam num filme.
É assim com Segundo Ato, no qual a história-base é simples: David, interpretado por Louis Garrel, é um galã bonito e sedutor — mas as coincidências comigo param por aí. Ele é bissexual e está enfrentando o salto no vazio de uma mulher apaixonada por ele. Ele quer repassá-la para um amigo, que é homofóbico e começa a falar mal dos gays.
Ao que Garrel o adverte: “Cuidado, estamos sendo filmados. Você vai ser cancelado.”
Eles são apresentados à garota e ao seu pai — que está cansado do filme. Ele decide abandonar o papel idiota de um filme de amor, abandonar o Titanic, já que, segundo ele, não é como os violinistas que continuaram tocando mesmo com o barco afundando.
O que o dissuade dessa ideia é um telefonema: ele foi chamado para fazer parte de um filme de um diretor brilhante, mordaz e inteligente. Perguntam a ele: é o Scorsese? “Não, é mais jovem.” Então é o Tarantino? “Não, é mais inteligente.”
Era Paul Thomas Anderson.
Aí eu vou ter que concordar.
Louis Garrel não só interpreta David, mas ele mesmo. Dá um jeito de falar com sua agente, tomada pela inveja, para que o retire do papel, já que o velho não sabe falar inglês. Afinal, ele já fez Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci — e quem faz Os Sonhadores não aceita qualquer coisa.
No filme, há um ator figurante que fica tão nervoso de atuar no próprio filme que não consegue servir vinho.
E na comédia incrivelmente ácida, todo o roteiro é escrito e dirigido por uma inteligência artificial. Quando os atores sugerem melhorias, ela apenas responde: “Sua opinião não será levada em consideração até o sistema falhar.” Como se fosse um certo ChatGPT.
Erros são eliminados por algoritmos, e a meta das atuações é alinhar tudo à direção artística dos produtores. Aliás, não sei se está disponível na Netflix, mas um dos produtores é a própria Netflix.
O mais empolgante, no final, é a teoria de David: a de que a realidade é uma ficção — e que a ficção é, de fato, a realidade.
Como dizia André Bazin, o cinema transforma o mundo real num mundo em mais harmonia com nossos sonhos. Só que aqui, seguindo essa tese, o cinema não é somente o sonho — é a própria realidade.
Isso também é usado para discutir, como dizia Dostoiévski, a respeito de Deus: se a realidade é ficção, então tudo é permitido — inclusive na ficção. Como os protagonistas do filme traírem seus cônjuges, sem pudor nem dilema moral. Afinal, se tudo é encenação, por que não?
No final, o grande plot twist: os autores homofóbicos são, eles mesmos, um casal homossexual — que discute sobre ter ou não um cachorro em casa.
Genial.
E se a ficção é realidade, o que eu pretendo ao resenhar um filme é mais do que convencer uma única alma perdida a querer ler.
É fazer literatura.
É produzir realidade através da ficção do meu texto.
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