Buñuel consegue a proeza de ser profundo e sério fazendo comédia, críticas sociais, políticas e econômicas — mas com a arte e a elegância aristocrática e altiva que ele tanto criticou e combateu.
O discreto charme da burguesia faz parte daquilo que chamo (arbitrariamente) de trilogia da crítica ao modo burguês e aristocrático de viver, ao lado de O anjo exterminador e Esse obscuro objeto do desejo. Essa classificação eu tirei direto do meu c. — érebro: que você não vai encontrar por aí.
Não é uma trilogia “clássica” como a da incomunicabilidade de Antonioni, que também critica de modo mais mordaz e sério a alienação da burguesia — assim como A doce vida, de Fellini. Mas Buñuel escolhe o caminho da ironia, da comédia e do surrealismo.
Neste filme, não são as imagens que são surreais (como nas pinturas de Salvador Dalí), mas as situações. É um filme que não precisa de uma gargalhada sonora, como Simpsons, Hermes e Renato, South Park ou mesmo Monty Python.
O riso aqui é interior, nasce no canto da boca, é uma satisfação no corpo todo que te faz pensar: “isso é genial.”
A história gira em torno de um grupo de burgueses que simplesmente tenta se alimentar. E a alimentação da elite é um ritual: de sociabilização, de distinção de classe. No ritual, ironizam os pobres, zombam de como “não sabem se portar à mesa”, imitam o jeito deles beberem martíni, e até desconfiam da qualidade dos queijos, vinhos, foie gras e dos preços muito baratos.
Como o rei Midas, cuja riqueza o impedia de comer, os personagens de Buñuel são vítimas do próprio ouro: o filme gira em torno das diversas tentativas deles de simplesmente se alimentar — mas esse prazer sempre é interrompido por algum evento… surreal.
Há um restaurante que serve clientes ao mesmo tempo em que abriga um velório. Há interrupções por generais, pela ameaça da polícia, até pela prisão de todos. As personagens — embaixadores, socialites e capitalistas — vivem de dividendos: lucros sem trabalho. Sua ociosidade é sua maior ocupação.
Um dos personagens é o embaixador de Miranda, país fictício da América Latina (talvez a Colômbia, pelas guerrilhas e pela facilidade com que o diplomata trafica cocaína).
E como muitos ex-nazistas se refugiaram por aqui — como o doutor Mengele, insano responsável pelas experiências nazistas em humanos e autor de verdadeiras atrocidades —, ele também encontrou abrigo no Brasil e na Argentina. Segundo o relato do filme, Miranda também acolheu muitos nazistas.
Por sua alienação e seu charme discreto — e não por suas atividades ilegais —, ele acaba sendo preso, como os demais.
Talvez a cena mais icônica do filme seja a tortura de um terrorista… no piano. As metáforas são muitas. Como nas peças de Shakespeare, o extraordinário é tratado com naturalidade.
Uma mãe morta aparece ao filho para contar que o padrasto matou o amor da vida dela para ficar com ela, e pede ao filho que o envenene — como um Hamlet tropical.
Ou o soldado que descobre da pior maneira que morreu, ao reencontrar pessoas mortas, mesmo acreditando que ainda está vivo.
Ou, ainda, o padre, cujo sonho maior é morar numa casa rica de burgueses, e por isso aceita ser um mero jardineiro. Mas um dia, ao ouvir a confissão de um moribundo — coincidentemente o autor do assassinato por envenenamento dos próprios pais —, algo inesperado acontece. A morte deles era um mistério até então, mas tudo se revela: os pais maltratavam duramente o assassino, tratando-o como um subalterno, até que ele se revoltou.
O padre-jardineiro deu a ele o perdão, sua bênção… mas, em seguida, resolveu fuzilá-lo com uma arma. Não por vingança — algo impensável para um padre —, mas como um ato de misericórdia: um assassinato compassivo de um pecador sofredor, em busca de absolvição.
E há as cenas dos burgueses caminhando a pé por uma estrada reta, sem destino. Uma metáfora dupla: da vida niilista e fútil, e da atividade mais anti-burguesa que há — caminhar a pé, eles que vivem cercados de aviões, carros e iates.
O filme termina com eles ainda caminhando… para lugar nenhum. Como todos os burgueses fazem.
Obra de arte de Buñuel.