O RECANTO DAS LETRAS, ORGULHOSAMENTE, APRESENTA
Pai,
Como um Agostinho que falava contigo pela escrita, ou um Vieira que pregava a Palavra com a palavra, venho por meio desta, para usar a antítese da beleza da linguagem das comunicações formais e mal escritas — porque até mesmo elas têm lugar em sua piedade — agradecer o entendimento de que o que você faz fora do local que frequenta, ou naquilo que deixa de fazer lá, faz mais diferença e gera mais resultados do que aquilo que se faz no local.
Isso equivale a dizer que fazer apenas o que é sugerido não traz resultado. Por exemplo, o que realmente faz diferença em esculpir o corpo e moldá-lo tem mais a ver com o que você faz fora da academia — como se hidratar, ter uma dieta rigorosa, controlar o cortisol e o sono — do que com o exercício em si. Ainda que este também tenha seu lugar. Esse programa a academia não te sugere.
Da mesma forma, ninguém se torna inteligente, erudito ou intelectual apenas estudando o que é proposto na faculdade, ou dentro da proposta da faculdade. É preciso ler em casa, por si mesmo. É necessário aprender a aprender.
Esse meu entendimento me dá a petulância de criticar uma unanimidade. Assim como aprendi com Heráclito e Nietzsche, ouso dizer sobre A Insustentável Leveza do Ser: a escrita do livro é boa, o enredo e a história são fracos, as ideias são excelentes, e o título é genial.
Um livro erótico, sofisticado e erudito. No título, temos a aparente contradição entre a leveza — que seria viver sem compromisso, hedonisticamente, de modo niilista e reativo — e o fato de que viver dessa forma nos conduz ao seu contraponto: é insustentável ser leve. Isso gera um peso existencial. Então, buscamos o sentido da vida, seu propósito, como se busca no amor.
Tomás representa essa leveza egoísta e sem sentido. Tereza representa o peso da insustentabilidade do ser, aquela que busca esse sentido mais profundo.
Mas o livro também é sobre a complexidade dos valores — como diz Edgar Morin — porque para cada valor há o seu oposto, igualmente digno e valoroso.
Nele, é exaltado o valor da fidelidade, mas também da traição, representada por Sabina. A liberdade se contrapõe à responsabilidade. O acaso se opõe ao destino. O corpo ao espírito. O privado ao político.
O pano de fundo do romance, que se passa na década de 60, é o movimento de liberalização do regime comunista da Tchecoslováquia, brutalmente reprimido pela invasão soviética, conhecida como a Primavera de Praga.
Se um Estado é autoritário, não há liberdade. O paraíso niilista — seja no comunismo, seja em certos cristianismos — deseja que todos sejam iguais. Essa despersonalização do indivíduo, para mim, é um grande mal.
Nesse contexto, ser fiel ao regime é ser traidor. Isso confere à fidelidade um valor ético inferior. Trair o regime, portanto, pode ser uma decisão eticamente mais aceitável. Mas cabe a cada vivente escolher, com sua própria tábua de valores, pois elas não nos foram dadas pelos céus.
Por outro lado, a fidelidade a uma causa boa, a um propósito, é algo belo — como à família ou a uma pessoa que se ama. Trair, nesse caso, é nocivo. Tudo depende.
E também surge a discussão sobre o que é ser mulher.
Para Franz, a condição de mulher supera sua individualidade. Ele vai contra o preceito de que a existência precede a essência. Para ele, a essência de mulher tem mais valor e precede sua existência.
Já Beauvoir diz que "não se nasce mulher, torna-se". Mesmo assim, Franz acredita que a palavra "mulher", como se significasse alguma coisa, vale mais do que a existência individual da pessoa.
A submissão de Sabina e das outras mulheres do romance às “gracinhas” dos homens, especialmente de Tomás — seria isso “coisa de mulher”? Isso não é nem um pouco sedutor.
Assim como Ovídio, no jogo da sedução, foi talvez o primeiro homem feminista da história ao dar armas e voz às mulheres em uma sociedade aristocrática e falocêntrica, eu também desejo dar armas às mulheres nesse jogo.
Como diz uma amiga: ser mulher não se define pelas coisas que ela faz — como citei no começo do texto — mas também pelas coisas que abdica de fazer, em nome de sua reputação. Não por causa de um homem, mas por causa do valor que dá a si mesma.
Ao contrário das mulheres de Kundera, que se submetem aos joguinhos dos homens, de antes ou de agora, ou de qualquer espécie, a mulher de valor não se submete.
E também sabe jogar com seu poder feminino. O explícito pode excitar e ser erótico, mas nem sempre desperta o amor. Existe uma linha tênue entre o erótico e o vulgar, entre sensualidade e pornografia.
É depois do orgasmo que sabemos com quem queremos ficar. Partilhar o que vem depois: a exaustão, a conversa, o sono...
E isso tem muito mais a ver com sensualidade, que é a arte da insinuação, de sugerir sem revelar totalmente.
Isso é sensual.
Isso é erótico.
Isso é amoroso — de maneira invulgar.
Hoje, esta foi uma oração herética e filosófica. Mas não sei se a filosofia é uma heresia ou se é a forma que Deus tem de conversar conosco e de se expressar.
Eu acho que é a segunda.
Amém.