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DAVE LE DAVE
SIM, ELE MESMO
Textos

SEBASTIÃO SALGADO ERA NOSSO SAL DA TERRA



O RECANTO DAS LETRAS, ORGULHOSAMENTE, APRESENTA:


 

O OLHAR QUE RESSUSCITA

É meio contraproducente escrever sobre um filme documentário anos depois de tê-lo assistido — e sem revê-lo —, mas a ocasião da morte de Sebastião Salgado, um dos maiores fotógrafos-artistas não só brasileiros, mas mundiais (portanto, um dos nossos maiores brasileiros, numa época em que carecemos de pessoas inspiradoras), me impeliu a dizer uma, duas ou três palavrinhas sobre Sebastião. Lá fora, conhecido mais por Sebastian.

 

A fotografia muito bela que vi de uma onça, que me lembrou o trabalho do artista já em sua fase mais tardia — buscando registrar animais em seu habitat natural —, também me moveu. Salgado buscou captar a beleza do planeta ainda “intocado” pela ação humana: florestas, desertos, geleiras, comunidades indígenas.

 

Apesar de os animais não serem o foco exclusivo, estão presentes como parte do equilíbrio entre natureza e vida selvagem que o fotógrafo quis celebrar. Como um Darwin em sua viagem de biólogo, registrando tudo — mas não pelo viés da ciência, e sim da espiritualidade da imagem captada através da câmera.

 


 

A CÂMERA É UM CORPO

E eu reitero a palavra artista para falar de Salgado, pois ele dizia que não era artista, mas simplesmente um fotógrafo. Fala de um artista.

 

Roland Barthes, exímio intelectual ligado à fotografia, tem um livro chamado A Câmara Clara. Barthes escreve esse livro como um luto — buscando a imagem que possa fazer reviver a mãe morta. Nesse livro belo e trágico, há muitos paralelos com o trabalho de Salgado e com o documentário sobre ele feito por Wim Wenders. Dois, ou três, ou quatro gênios dialogando — já que estou escrevendo sobre os três.

 


 

ENTRE O STADIUM E O PUNCTUM

Em A Câmara Clara, Barthes apresenta dois conceitos centrais para pensar a fotografia:

 

Studium: o campo do interesse cultural, social ou político da imagem — aquilo que se entende, contextualiza, estuda.

 

Punctum: o detalhe que fere, que rasga o olhar e atinge o espectador num nível íntimo, quase inexplicável — como uma dor ou uma revelação.

 

No caso de Salgado, as imagens de refugiados, trabalhadores em minas de ouro, crianças famintas, não são apenas documentos sociais (studium) — elas transbordam em punctum, na medida em que:

 

• Há um olhar que devolve dignidade aos corpos esmagados.

 

• Há um rosto, um gesto, um olho que encara a câmera e atravessa o espectador — quase como se nos pedissem para não esquecê-los.

 

• A própria câmera se torna um campo de feridas: ferida no mundo e no olhar de quem assiste.

 

Barthes diz:

 

“O punctum é isso: uma espécie de acaso que me punge (mas também me fere, me mortifica).”

 

O olhar de Salgado, ao captar a dor sem fetichizá-la, carrega exatamente esse “pungir” — ele não nos permite ser apenas observadores distantes.

 


 

CULPA E LUZ

E nesse documentário de Wenders me chamou atenção a grandiloquência com que Salgado une o studium ao punctum, ao mostrar seu primeiro trabalho fotografando trabalhadores de uma mina.

 

Ao mesmo tempo, a mina é cenário à parte, mas em segundo plano. Os trabalhadores, buscando riqueza em vão, depauperados, estão em primeiro plano. O telespectador não sai inocente, ileso ou indiferente de uma fotografia de Salgado. Como um voyeur observando algo indiscreto, ele se sente culpado pelo que viu.

 


 

O SAL DA TERRA

O título de Wenders se refere ao Evangelho de Mateus (5:13), onde Jesus diz:

 

“Vós sois o sal da terra. Mas se o sal perder o sabor, com que se há de salgar?”

 

O “sal da terra” se refere aos justos, aos essenciais — àqueles que preservam a vida com sua existência íntegra, que evitam a corrupção do mundo.

 

O título homenageia as pessoas que Salgado fotografou — trabalhadores, refugiados, indígenas, nômades, famintos, sobreviventes de guerras e da miséria. São elas, aos olhos do fotógrafo, o verdadeiro “sal da terra”:

➡️ os que sustentam o mundo com o corpo e com a dor.

 

Ao mesmo tempo, o próprio Salgado também é “sal da terra”, no sentido de ser alguém que busca testemunhar e preservar a dignidade humana e ambiental, mesmo diante da devastação.

 


 

REPLANTAR A MORTE

O filme termina com a fase de regeneração: o reflorestamento do Instituto Terra. Aqui, o “sal” também é vida, cura e continuidade. 

Em que ele e sua mulher praticamente restituíram toda uma fauna e um bioma de árvores e animais, começando do zero — plantando com as próprias mãos as primeiras sementes, que hoje não só se tornaram árvores, mas todo um ecossistema, no terreno privado deles.

 

Depois de tantos anos testemunhando o colapso do mundo humano, Salgado encontra esperança na terra literalmente restaurada.

 

O Sal da Terra é sobre aqueles que, mesmo esmagados, ainda temperam a existência com sua dignidade.

É sobre ver o mundo de perto, do chão, com os olhos do corpo — e não perder a capacidade de se comover.

 

É um testemunho do sofrimento, mas também uma confissão de amor ao planeta e às pessoas invisíveis, cuja dor é o studium, mas a rendição é o punctum — o sal da terra, o detalhe que resgata a dignidade humana.

 


 

A FOTOGRAFIA COMO AMOR

Em A Câmara Clara, Barthes busca a imagem que fere e cura. Em O Sal da Terra, Salgado nos entrega essas imagens.

 

Imagens que, mais do que informar, nos convocam à memória, à dor e à compaixão ativa.

 

Ambos compreendem a fotografia como um gesto de amor — por quem já se foi, por quem resiste, por quem nunca foi visto.

 


 

O REGISTRO COMO RESSURREIÇÃO

E esse meu texto — assim como Barthes, em seu livro, quis ressuscitar a mãe — não sua carne, mas sua memória e espírito — tenta capturar e imortalizar, através do registro da minha câmera.

 

Não em celulose ou película, mas em papiro — mais precisamente, digital — assim como há fotografias digitais, esta é uma memória digital.

 

A memória e o espírito desse artista genial e fantástico, que, por bem, Deus quis que nascesse brasileiro — como dizem que Ele também é.

Talvez, por essa graça que nos concedeu, Ele seja mesmo.

 



DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo)
Enviado por DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo) em 26/05/2025
Alterado em 26/05/2025
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