Pai, se é verdade que Truffaut dizia que, se fosse um acerto de contas, não poderia ser obra de arte, então meus textos nunca serão arte. Porque eles são um acerto de contas — não com o outro somente, mas mais comigo mesmo.
Minha oração é quase um sermão de Padre Vieira.
Eu sempre fico perplexo com essas pessoas, Pai, que parecem interessantes, só na aparência, mas, quando abrem a boca, são um deserto e só dizem um monte de senso comum e banalidades.
Acho que gastaram toda a criatividade em parecer interessantes, e não sobra mais nada para o resto.
A graça que alcancei, Pai — e há só Você como testemunha — é que, se ninguém me elogia, eu mesmo me elogio. Meu texto em que transitei do filme Noites de Cabíria para o romance do Kundera, com uma transição sutil, suave e elegante, explicando o começo e os principais conceitos, mostra uma sofisticação e, ao mesmo tempo, uma maturidade intelectual que me dá muito orgulho, Pai.
E essa capacidade adquirida, eu tenho que agradecer.
Vejo esses seus filhos do Recanto das Letras que estão ali há quase duas décadas, e, nesse tempo, não publicaram nada minimamente relevante — quanto mais algo que se compare a esse meu texto.
Enquanto eu me escrevo quatro textos por dia, em média, eles escrevem um texto — acredito — a cada ano bissexto.
Eu não confio nesse conceito de “inspiração” ou “falta de tempo”. O que há é falta de conteúdo, falta do que escrever, falta de talento.
Mas talento e conteúdo só são produzidos com matéria-prima do pensamento. Igual bolo sem ingrediente não se faz. Sem conteúdo, não se produz um texto.
E em Sua graça me revelastes — não em sonho, como um profeta — mas acordado mesmo: sem atualização, um talento não é nada.
Que a demora de um organismo reagir a um estímulo, em sua resposta para enfrentá-lo, é uma fraqueza — assim como é uma fraqueza agir logo após um estímulo, sem pensar.
A maioria das pessoas, como diz Heráclito, estão dormindo para as coisas do pensamento. Mas a incapacidade das pessoas — especialmente das mulheres — de ficarem sozinhas, de lidarem com a própria solidão, às vezes vem por não suportarem a si mesmas. Fazem-se escorar num outro como numa muleta.
Mas esse outro também é alguém vazio, sem conteúdo. Mais um dormente. Então ficam dois, compartilhando a sua miséria, como um pássaro que tira a migalha do próprio bico para dar ao outro.
É a incapacidade da mulher de reagir ao estímulo da vida de ficar sozinha.
Eu sempre estou sozinho. Somente sozinho poderei ser uma companhia prazerosa para o outro. E nunca me canso da minha própria companhia.
Mesmo numa multidão — ainda que no momento do orgasmo a dois — eu estou sozinho, com meus próprios pensamentos em primeiro plano.
Por isso não preciso de personal trainer, personal intelector, personal porra nenhuma.
Meus próprios pensamentos e minha própria companhia me bastam.
E, por ter a mim mesmo e meus pensamentos, nunca estive mais bem acompanhado.
No entanto, eu aceito de bom grado o que o destino me traz pra comer no bico. Mas eu mesmo não procuro alimento.
Como me sucedeu esta semana.
É claro que eu facilito e ajudo o destino a me ajudar. Dou uma mão. E não é difícil. Aliás, eu saio de domingo a domingo, me desloco bastante em São Paulo, vejo muita gente diariamente, trabalho com o público.
Eu me ajudo a me ajudar.
E Deus também faz sua parte e me ajuda.
Amém.