Como pode Federico Fellini converter sua mulher, Giulietta, em uma musa do cinema? Ela, que segundo outro excelente filme protagonizado por ela — Estrada da Vida —, “tem cara de alcachofra”?
Antes do expressionismo alemão — e talvez por herança do cinema mudo —, Giulietta é muito expressiva em cena. Uma coisa meio circense. Não é muito verossímil ela no papel de prostituta, mas mesmo com esse desajuste, sua força cênica é tão grande que ela brilha.
Noites de Cabíria é um filme sobre relações de poder e sobre como as pessoas repetem padrões destrutivos inconscientemente, por medo de ficarem sozinhas — talvez agravado pelo fato de não serem autônomas, nem física, nem emocionalmente.
Cabíria é financeiramente independente: tem sua própria casinha, como gosta de se orgulhar, conseguida com o suor do corpo… literalmente. Mas, no sentido afetivo, ela é um desastre do começo ao fim. Arruma homens cafajestes que só querem roubar seu dinheiro.
Na primeira cena, seu namorado a joga na água e rouba suas bolsas para que morresse. Mas seu otimismo impediu que ela morresse — e foi salva.
Na última cena, aparece o “homem dos sonhos”, que a leva para viajar e promete casar com ela. Cabíria vende a casa como dote. Para celebrar, vão a um lugar alto para ver a paisagem. Subitamente, ela percebe algo diferente no olhar do amante. Presume tudo:
“Você irá me matar. Você irá me matar”, diz, com lágrimas nos olhos.
Ele, constrangido com o ataque dela, resolve não atirá-la do penhasco… mas não abre mão de roubar seu dinheiro.
É a história da repetição. O eterno retorno do mesmo.
Assim também começa A Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera. Para Kundera, o eterno retorno é um peso terrível, porque traria o fardo de que cada ação nossa se repetiria indefinidamente no tempo — o que nos impõe enorme responsabilidade.
Cabíria não precisou sequer reencarnar para repetir o mesmo comportamento destrutivo: amar cafajestes, pela impossibilidade de ficar sozinha.
Mas quando agimos sem fardo, sem consequência, sem compromisso, encontramos o contrário do peso — encontramos a leveza do ser.
Embora o romance de Kundera seja sofisticadíssimo, cheio de apartes filosóficos e intelectuais, ele não me engana: a história que ele narra é simplesmente um 50 Tons de Cinza, só que intelectual.
Em vez de um empresário americano, aqui temos um médico. Em vez de Seattle, estamos em Praga. Sua moça, Teresa, é uma espécie de garçonete — mas é “salva” por Tomás.
Mas uma coisa é Kundera, o narrador do livro. Outra coisa é Tomás. Tomás é simplesmente um médico — e, como esperado, ele tem pouco espírito. Desprovido de cultura.
Uma vez, um médico colombiano do Mais Médicos, arguindo comigo, disse que também era “letrado”. Desculpe-me lhe dizer, amigo, você não é letrado. Você é simplesmente um técnico de saúde. E, mesmo como técnico de saúde, é muito fraco e despreparado mentalmente. Não tem cuidado com o próprio corpo e aparência — como costuma ser a categoria medíocre dos médicos.
O médico nem é burguês, tampouco capitalista. Não detém os meios de produção. Ele é o proletário de elite, digamos assim. E, por isso mesmo, além de ignorante, é desprovido de consciência de classe.
Esse é o retrato dos médicos. Tomás não é diferente. Com o agravante de que é libertino — e só se envolve com Teresa não por amor, mas por compaixão.
Compadecer-se é sentir piedade diante do sofrimento alheio. E, para se sentir bem, Tomás ajuda essa pobre garota. Chega a confundir isso com amor. Mora com ela. Casa-se com ela. Mas continua traindo a coitada.
E Teresa, por dependência financeira e emocional, por medo de ficar sozinha, fica presa ao canalha.
E o canalha — veja bem — trai a moça constantemente com diversas amantes. Um tipo medíocre de médico que só sobrevive e tem êxito pela incapacidade de mulheres, como Teresa, como Cabíria, como inúmeras, de ficarem sozinhas.
Medo de lidarem consigo mesmas. De não se suportarem. Então, lançam-se nos braços do primeiro que aparece — ainda que desprovido de elegância e espírito.
Mas se tiver uma carreira de médico e alguma beleza, como parece ser Tomás, tanto melhor pra elas. E elas se submetem a tudo por cafajestes desses.
Se eu já me aproveitei dessa carência afetiva das mulheres também? Ora, aqui estamos falando de Tomás, não de mim. Se alguém quiser falar de mim, que faça um texto.
Mas a diferença fundamental: eu não engano ninguém. Não traio. Não brinco com sentimentos de ninguém.
Apesar de ele ter roubado antes de mim meu conceito de amizade erótica, eu não tenho namorada. Acho a traição uma vulgaridade. Não amo por compaixão — amo genuinamente.
Na verdade, entre Tomás e Teresa, o ignorante dos dois é ele — apesar da profissão “útil” que exerce mediocremente.
Teresa apareceu na vida dele, segundo ele, como uma criança chorando num cesto. Mas em vez de um ursinho, seu misógino, ela trazia um exemplar de Anna Karenina.
Comprou para você os discos de Beethoven. Batizou sua cachorra de Karenina. Mas Tomás ignorava a riqueza de Teresa. Preferia suas quengas — tão ignorantes e desprezíveis quanto ele.
Ajudou o outro apenas pelo sentimento de poder que o altruísmo proporciona. No fim, só pensava em si.
Porém, a leveza do ser é conquistada — como na última cena de Noites de Cabíria.
Apesar dos fardos, Cabíria esquece para continuar a viver. E, sorridente, enxuga as lágrimas para acompanhar uma procissão.
Nós, telespectadores, esperamos que ela conduza pelo caminho da felicidade.