Pai, sou eu quem lhe escreve.
Espero que você saiba quem eu seja, já que eu mesmo não sei.
Mas… o que me importa SER?
O que importa é o que é — o transitório, o movimento, o que muda, o que está sempre em transformação, como o rio de Heráclito — não o que permanece.
Ao escrever este texto, eu já serei outro.
E no fim do dia, mais outro ainda.
Sou vários, de acordo com os estados de intensidade que atravessam meu corpo sem órgãos, como diria Deleuze. Cabe a mim cuidar para que minhas afecções sejam as melhores possíveis, para gerar o melhor “eu” possível — para mim, para quem amo e, depois, para a sociedade. Esse é meu trabalho.
É engraçado — e até um elogio — as críticas que as inimigas (ou talvez os demônios do seu maior inimigo, anjos caídos que ele me mandou para me testar) fazem sobre mim:
“Essa página só pode ser de muitas pessoas.”
É que eu sou um exército de um homem só.
A single man show.
Sou vários em um só. Polivalente. Multifacetado.
Heráclito, já teria dito que o mundo se divide entre a maioria (os que me criticam) e os raros — aqueles que me aplaudem, que têm ouvidos e capacidade para o meu conteúdo.
Heráclito já dizia: a maioria é composta por dormentes — que, mesmo despertos, ainda dormem para as coisas do pensamento. Gente que não é do ramo.
Agora, pensar e exercer o pensamento é tarefa para um ou outro.
Os despertos. Os acordados.
Os despertos sabem que a história do pensamento não começou com seu filho, nem com o deus que nasceu antes do dele, que foi Sócrates. Mas com os pré-socráticos.
Todos os conceitos fundamentais da filosofia e do pensamento já estavam lá: o do Ser e do Nada, em Parmênides — que depois retomariam os existencialistas como Sartre e Heidegger.
Os despertos e acordados — como na reflexão de Matrix e suas pílulas — sabem distinguir o mundo sensível e o real verdadeiro: o das ideias e das sombras.
A essência das coisas.
O Verbo.
O mundo ontológico.
O universo ôntico.
O Ser e os entes.
Hoje, peço para que eu continue desperto.
E, quanto ao pensamento, que eu jamais adormeça —
Para ser, sempre, lúcido.
Heráclito dizia, inclusive, que não devíamos ser lidos por muitos, já que eles não têm capacidade de entender. Por isso, ele escrevia de modo inacessível e hermético para a maioria.
Eu penso um pouco diferente.
Eu acho mais difícil ser entendido por gente burra do que por quem é inteligente.
É mais difícil adaptar um conceito filosófico difícil para pessoas ignorantes do que escrever em linguagem técnica para quem domina o assunto.
O que o Clóvis faz oralmente é o que eu pretendo fazer com a escrita.
E escrevo sobre alta cultura, conceitos filosóficos, psicológicos e sociais sofisticadíssimos, arte — e acho que sou bem-sucedido e, sim, compreendido pela maioria.
Mas sem vulgarizar meu conteúdo.
Isso graças à minha capacidade — e talvez dom celeste — que o Senhor me deu, Pai.
É claro que alguns, os dormentes, que sofrem até de narcolepsia, esses não entenderão nem de uma forma, nem de outra, e chamarão meu conteúdo de “besta e inútil”.
Esses dormem para sempre.
Amém.