Por Goethe, Nietzsche teria um sentimento ambíguo: ora de admiração pela sua força poética, ora pelo símbolo de decadência que ele via permear a cultura alemã, muito influenciada pela reforma de Lutero, Hegel e Kant. E justamente esse romance epistolar de Goethe é símbolo, pelo seu personagem, do alto espírito alemão, mas também de sua decadência.
Primeiro, a escolha epistolar para narrar a história, que na verdade é falsa, porque nele há passagens de um narrador pontuando algumas questões. Também segue a teoria da comunicação que diz que para haver comunicação basta haver um emissor da mensagem e um receptor; não é necessário haver uma resposta. E nisso eu me identifico com meus escritos para a pessoa que amo, porque só eu escrevo, ela lê, mas não há resposta.
Mas a semelhança entre mim e Werther para por aqui, e também pelo fato de amarmos uma pessoa idealizada. A diferença é que ele convive com a pessoa que ama, mas que não gosta dele a não ser como amigo e irmão, e a pessoa que amo eu não convivo ou falo, mas tenho que acreditar que ela me ama. É tudo diferente.
E o nosso pathos — origem, energia vital — não poderia ser mais diferente. Werther é um jovem burguês ocioso e despreocupado, porque não precisa se preocupar com dinheiro por ser de uma família bem nascida. Sua preocupação é viver, gozar, estudar, ler, cultivar o belo e amar.
Porém, a pessoa que escolheu para amar, a Lotte, já tinha marido, Albert, mas amava Werther também, amava suas feições, gestos, espírito, e o amava como irmão. Quem ela escolheu para amar é o Albert, que é um homem produtivo, útil, um bom partido, mas que carece de espírito artístico — um homem bom do ponto de vista cristão e kantiano alemão, que Nietzsche veria como expressão dos últimos homens, que só buscam saúde, ser útil, paz e conforto.
Porém, apesar de ser mais artístico, Nietzsche veria Werther também como a expressão mais arrebatada de niilista schopenhaueriano passivo, também decadente, que fica muito expresso com as suas decisões.
Lotte, apesar de amar a companhia e o espírito dócil de Werther, não o amava como amante, mas como amigo. Porém, também queria casá-lo com uma de suas amigas, mas no fundo queria ter o amor daquele amigo só para si, por isso sempre encontrava objeções. É uma história também de friendzone.
E aqui minha diferença é abissal: eu não sou burguês, não sou bem nascido, dispenso qualquer amizade com o sexo feminino, a não ser com segundas intenções ou se a amizade for da minha melhor amiga, que também tem que ser da minha mulher. Da mulher eu quero seu corpo, seu pensamento, seu espírito, sua alma, mas sua amizade eu dispenso, porque ela nunca leva a nada, muito menos ao prazer.
Werther forçava as visitas a Lotte e sua presença por necessidade dele de estar por perto, e causava certo desconforto ao casal, até que um dia Lotte disse que ele não poderia vir mais, a não ser no Natal, em data especial, não antes disso. Werther recebeu a notícia como um punhal, e aqui o livro vira um ensaio de Camus, O Mito de Sísifo, que diz que não há questão filosófica mais importante que o suicídio, e decide se suicidar.
Nietzsche veria nisso a incapacidade de se curar, de lutar pelo seu amor, provar-se como sendo melhor e pior, deixando cartaz de sua morte para atacar quem ama, como exemplo arrebatado de fraqueza e niilismo. Que, em vez de criar, voltar-se para si, volta-se para a morte — sua e a do outro.
Ele revela em carta que um dos três deveria morrer: pensou em matar ela, Albert, mas é melhor ele matar a si mesmo. Em sua morte, ele pretende atacar Lotte, mas não sabe que isso é abrir mão do seu bem mais sagrado e da disputa; ele se torna perdedor.
Até por isso Goethe nem se detém aos sentimentos que sua morte deixou no casal, e toca no assunto só de maneira lacônica. Porque, de fato, eles sentiriam a morte dele só por algum tempo, mas, no fundo, sua morte traria conforto ao casal a longo prazo.
Símbolo disso é a hesitação, mas quem deu as pistolas de Albert para Werther se matar — a pretexto de um passeio planejado para seu suicídio, que planejou como um artista — foi a própria Lotte, que já imaginava sua pretensão pela conversa que tiveram no dia anterior, e mesmo assim limpou o pó das armas e não hesitou em entregar as pistolas ao criado de Werther, talvez com um misto de alívio e tristeza, sabendo qual seria o desfecho e a utilidade daquelas armas.
Sem dúvidas, Werther tinha que morrer porque era fraco, um decadente, como sua resolução de deixar a vida mostrou. E Lotte sabia disso, Albert sabia disso, o próprio Werther sabia disso, por isso deram as armas para ele levar o projeto adiante, e acabou sendo a melhor decisão para todos — para felicidade de todos, até para um organismo decadente que sofre como Werther.
Mas por isso a história de amor dele e o pathos de existência e criação são diferentes da minha. Se eu encontro o rival ou barreira do meu amor, não viro minha energia contra ela nem contra o rival, mas para mim mesmo, para mostrar minha força de vontade e distinção através da minha obra e criação para quem me rejeitar, seja quem for que mais perca.
E se encontro um rival ou o objeto do meu desejo tiver um pretendente, não é uma pessoa que vai me impedir de ficar com ela. Aliás, o meu lance é com quem amo, e não com outra pessoa. E se eu tiver uma barreira, tanto pior para ele, porque eu farei de tudo para levar a cabo minhas intenções.
Mas, diferentemente de Werther, um decadente, eu pretendo triunfar através da criação, da distinção, da minha força voltada para mim mesmo, e não pela eliminação de outra vida, ainda mais a mais sagrada, que é a de quem amo ou a minha própria.