Enquanto uns se dizem escritores, eu me esquivo dessa definição. No máximo, sou alguém que escreve. Escritor é um copista, como aqueles que copiavam a Bíblia de mãos em mãos para que o livro sagrado fosse divulgado. Mas dizem que os autores da Bíblia são outros — e o verdadeiro autor, na verdade, é o Espírito Santo.
Por isso, não sou escritor: sou um autor. Produzo o novo, crio, autentico. Quem escreve é o copista.
O Recanto das Letras é a rede dos copistas — e há poucos autores. Quando comparo a qualidade visual, identidade e conteúdo com a de outros “autores”, chega a ser covardia.
Engana-se quem pensa que o reconhecimento e o mérito estão em ser o mais comentado ou lido da semana, ou em figurar na icônica lista do DECANO Paulo Miranda. Muito pelo contrário: o verdadeiro sinal de eleição é ser escolhido por um seleto grupo de leitores que não leem apenas os textos, mas o autor.
Poucos têm o direito a essa prerrogativa. São pessoas que escolhem seus livros com critério, que decidem me visitar não por cortesia, mas por afinidade.
Os autores mais visitados e comentados me lembram um episódio de Black Mirror — o segundo que assisti, não por vontade própria, mas por obrigação. Era parte da “capacitação” de quarta-feira, cuja “aula” consistia em comer pipoca com refrigerante comprado com o dinheiro dos beneficiários, e assistir a um episódio dublado da série. Martírio.
Sair da minha casa, do outro lado da cidade, para assistir Netflix — e logo uma série ruim. Ainda assim, esse episódio foi melhor que o piloto, que sequer consegui passar dos primeiros dez minutos. Apesar de caricato, com um enredo que parece ter saído de uma escola de roteiro escrita por muitas mãos (ou até um robô), o episódio contava a história de uma moça fissurada em redes sociais, em um universo distópico onde as relações e posições sociais são controladas por avaliações.
Quanto maior sua reputação, mais privilégios. Até aí, nada muito original. Afinal, o que ocupa o lugar das redes hoje é o capital — financeiro e simbólico, como analisaria Bourdieu. O capital ali é interativo e virtual. Sua felicidade é medida por curtidas e por avaliações invisíveis.
A personagem, querendo melhorar sua pontuação, contrata uma consultoria. A recomendação: conquistar avaliações máximas de pessoas influentes, fora de seu círculo habitual.
Como diria Bourdieu, quanto maior a distância social entre o elogiado e o elogiador, maior o prestígio social do elogio. Então ela decide se aproximar de uma antiga amiga com reputação 4.7 (quase o máximo, que é 5), enquanto ela própria tem 4.3.
Nessa sociedade, as relações reais não importam — importa a atuação. Nada muito diferente de hoje.
Ela apela ao aspecto emocional: publica uma foto que remete à infância das duas. A amizade era marcada por uma assimetria de poder — a popular comandava; ela obedecia. E agora, como alpinista social, tenta ser convidada para um casamento exclusivo de pessoas com pontuação 4.5 ou mais.
Mas, no caminho, uma série de infortúnios a leva a perder pontos. Sua nota despenca para 1, ou menos. Sua presença no casamento passa a ser indesejada, para não “queimar o filme”. Mesmo assim, ela vai — bêbada, desfigurada, faz um escândalo. É presa.
Pois bem: mais atual, impossível.
Os mais comentados e lidos são os escritores da falsidade. Buscam avaliações e amizades, não conteúdo. As “qualidades” deles são medidas por comentários banais e genéricos de quem quer aparecer — gente que nem leu o texto. O conteúdo, intelectual ou visual, fica em segundo plano.
Isso é o oposto do que me proponho. Quem me acompanha, sabe.
Meu comentário é uma distinção. Um carimbo. Uma chancela. Assim como me ler também o é. Ora, as pessoas gastam horas nas redes sociais lendo bobagens — então ler um conteúdo da minha estirpe, ainda que mais de uma vez, só pode ser benéfico. É o melhor uso do tempo.
Sou um autor. Não um mero escritor.
Ainda que quem tenha “escrito” tenha sido o ChatGPT do meu celular, fui eu quem ditou e criei o conteúdo. Ou seja: qualquer erro ou falha é culpa dele — mas qualquer mérito é meu.