Se você NÃO conhece Godard ou ouviu falar dele pela primeira vez exclusivamente por aquela música chata do Legião Urbana, eu lamento por você.
Godard nasceu em família burguesa — e justamente por isso quis destruir a burguesia por dentro. Foi crítico de cinema da Cahiers du Cinéma e, por isso, quis destruir o cinema de dentro. E de certa forma conseguiu: destruir o inimigo por dentro é a melhor maneira de vencê-lo.
Godard revolucionou o cinema ao inventar o pensamento cinematográfico. Ele escrevia com a câmera. No entanto, ao transformar essa arte em ferramenta política, abriu mão do seu ofício e começou a matar o próprio cinema. Morreu há pouco tempo — mas o artista morre antes do corpo quando abdica da arte em nome de uma vulgaridade urgente como a política.
Na época do movimento Dziga Vertov (nomeado em homenagem ao cineasta russo precursor), Godard declarou que, dali em diante, faria “filmes políticos de maneira política”. Mas, honestamente, talvez tenha escolhido o nome errado para o movimento: devia ter se chamado “Trotsky”, não alguém que revolucionou artisticamente o cinema. A arte foi suprimida por panfletos.
Essa pretensão política de Godard é oposta à minha. Quero escrever sobre arte de maneira artística. Ou, quando for o caso, sobre assuntos intelectuais de maneira intelectual. É verdade que por um tempo Godard uniu política e arte — fez política como se fosse arte. Mas em muitos momentos essa politização me faz virar o rosto da tela, como se assistisse a um assassinato brutal demais para encarar. Só que a vítima, neste caso, não é uma pessoa. É a própria arte.
A crítica da extrema-direita — beócia e bovina, em geral — acerta em um ponto: filósofos do século XX faziam política, sem dúvida. Sartre, a Escola de Frankfurt, Deleuze, todos têm um viés militante evidente, inclusive em suas obras. Mas, ao contrário deles, tento filtrar e abstrair apenas o que me convém, o que é prático na minha vida.
Esses filósofos foram influenciados por Nietzsche, mas jamais serão “nietzscheanos”. Nietzsche era totalmente antipolítico. Os políticos que ele admirava eram conquistadores como César ou Napoleão — expressões puras de vontade de potência.
Em “Masculino Feminino”, o filme sobre o qual quero falar, há uma frase: “Mate uma pessoa e será um criminoso. Mate milhares e será um conquistador. Mate todo mundo e será Deus.” É aí que o cinema de Godard brilha: na escrita visual, no lirismo da cena, no jogo poético com a linguagem e no fato de não se levar a sério. São filmes que sabem que são filmes.
Por isso há quebra da quarta parede. Por isso há espaço para o cômico, para a piada, para a literatura, para o cinema dentro do cinema. Godard dilui a lógica utilitarista da cena: ela não precisa servir à história. Para ele, a história acontece na cena — e não o contrário.
Já escrevi sobre David Lynch, e ele guarda certa semelhança com Godard: seus filmes não têm espaço para improviso. A mise-en-scène é inteiramente controlada, cada cena é específica. Os closes em Godard focam a expressão de quem escuta, enquanto quem fala não aparece — ao contrário do estilo pingue-pongue do cinema clássico, algo que Godard satiriza em O Desprezo.
Godard também não filmava com roteiro fechado. Vendia o projeto apenas com seu nome, garantia verba e escrevia o filme durante as filmagens. Ironicamente, mesmo que nada fosse improvisado visualmente, os diálogos e a narrativa eram criados na hora.
Esse método é próximo ao meu. Escrevo como quem borda, tece, costura referências. Um patchwork de ideias que, quando bem feito, gera algo magnífico. Pelo menos, no meu caso — e no de Godard, na maioria das vezes.
Se copiei ele? Não sei dizer. Mas se copiei, aperfeiçoei. Apesar de ser um anônimo — e ele, Godard.
É curioso que a Legião Urbana tenha evocado Godard — ainda que mal. Um nome adequado para a banda, aliás: legião, como o coletivo de demônios.
Godard era ligado ao Brasil pela via da política. Foi amigo de Glauber Rocha, com quem trabalhou. Em Masculino Feminino, há um momento em que Paul (Jean-Pierre Léaud) lê uma carta em solidariedade aos artistas perseguidos pela ditadura no Rio.
É engraçado como, no filme, Godard faz menção a seu amigo Truffaut — com quem romperia relações justamente pela divergência artística. Truffaut era contrário à politização da arte, inclusive em seus próprios filmes. Em Masculino Feminino, o personagem Paul (interpretado por Jean-Pierre Léaud, o ator que ficou eternizado como o alter ego de Truffaut, Antoine Doinel) representa um elo ambíguo entre os dois cineastas.
Jean-Pierre Léaud, que na infância foi o rosto mais famoso da Nouvelle Vague, atuou com grandes cineastas do mundo inteiro, como Glauber Rocha e Bernardo Bertolucci. No filme de Godard, ele mesmo diz ser “o general Doinel”, um personagem que teria saído do exército para começar a vida adulta — uma paródia à transição de Doinel, o personagem de Truffaut, da adolescência à maturidade.
Paul também vem do exército. E Madeleine, a protagonista, diz a ele que ele não é Pierre ou Ferdinand — personagens do Demônio das Onze Horas, meu filme favorito de Godard — para sair por aí fugindo e roubando carros por amor. É uma crítica interna, uma meta-referência ao próprio universo godardiano, onde os personagens dialogam com as mitologias de outros filmes, criando uma constelação de sentidos.
Vamos falar do filme, além da política — embora história nunca tenha sido o forte de Godard. Paul é um jornalista desempregado, um bon vivant que se envolve com Madeleine, uma cantora, atriz e fotógrafa. Consegue um trabalho fazendo pesquisas de opinião, mas sempre converte os dados em discurso político.
Sem ter onde morar, Paul acaba dividindo a casa e a cama com Madeleine e sua amiga Elisabeth, num ménage à trois romântico e ideal. Há ainda uma quarta mulher na equação. Madeleine, ao que tudo indica, é uma Capitu ou Desdêmona. Mas Paul não sente ciúmes. É uma evolução de Otelo e Dom Casmurro. Ele apenas vive.
Paul herda dinheiro da mãe, compra um apartamento e leva Madeleine para morar com ele. Mas uma discussão surge: ela quer levar a amiga junto. Ele não quer. Talvez por amar Elisabeth.
O filme termina com o depoimento sobre a morte de Paul. Não se explica como. Dizem que ele caiu do alto de um prédio ao tentar tirar uma foto. Como Deleuze, que se jogou. Mas uma amiga descarta o suicídio — Paul amava viver. Talvez tenha sido só um acidente.
Esse tipo de fatalidade acontece mesmo — especialmente nos filmes de Godard.