O RECANTO DAS LETRAS, ORGULHOSAMENTE, APRESENTA:
Ah, Wim Wenders. Que nos emocionou na última cena de Paris, Texas, que fez a obra de arte em que um anjo se apaixona por uma trapezista de circo. E como o filme, de preto e branco, vai ganhando cores fortes, escalafobéticas, à medida que o anjo deixa de ser anjo para se tornar mortal — apenas para viver seu amor.
Agora, nesse filme de 2023, que rendeu o prêmio de melhor ator em Cannes, ele presta uma homenagem caríssima ao cinema de Yasujirō Ozu, o mestre de filmar a poesia do cotidiano, especialmente em Era uma vez em Tóquio. Não por coincidência, o novo filme também se passa em Tóquio.
Nessa película, que está disponível no Mubi — essa plataforma que é um beijo na boca dos filmes de arte — Wenders opera uma bruxaria: narra praticamente a minha vida, só que em formato oriental, como se eu morasse do outro lado do mundo, na terra do sol nascente.
É como Kurosawa adaptando Shakespeare em Trono Manchado de Sangue e Ran. Dias Perfeitos é uma dessas obras que, como Deleuze, você assiste e diz: “então sou eu”.
A forma do filme é totalmente coerente com a simplicidade do conteúdo. O protagonista é um simples lavador de lavabos, banheiros no Japão. E ele exerce sua função com tamanha dignidade e zelo que parece um artista do cotidiano, um artesão do trabalho simples.
Na verdade, ele se eleva pela dignidade com que vive. A simplicidade da vida material contrasta com a riqueza de seu espírito: em seu cômodo pequeno — que já é um luxo em Tóquio — ele convive com uma pilha de cassetes raros, livros e mais livros.
Seu cotidiano é ler, escutar música, cultivar plantas e contemplar a paisagem. Ele opera a alquimia de transformar a pobreza em luxo — típico de espíritos livres, nobres e raros, que não dependem de dinheiro.
Trabalha com dedicação, mas também se entrega intensamente ao dolce far niente: come bem, bebe bem, não abre mão do banho nas famosas casas de banho japonesas, contemplando a natureza. Nas imperfeições do dia, ele tem dias perfeitos.
Quanta sabedoria cabe em duas horas de filme — que valem por uma universidade. Eu me identifico com personagens que são ricos sendo pobres: como Bernardo Soares, Stephen Dedalus… Talvez até um Karamazov — quem sabe Aliosha seja mais apropriado. E por que não eu?
Tudo que mais gosto é ouvir música, ler, ver filmes, contemplar a vida, gozá-la. Mas não posso me entregar completamente a essas coisas para não cair no imobilismo. É difícil abrir mão do que se mais ama.
Por isso trabalho, me movimento, me exercito. Mas ainda vejo filmes — como o de hoje — na esteira. E escrevo. E leio. Sempre em movimento. Mas aí vem a questão da falta. Que, normalmente, é da mulher. Sempre a mulher.
A mulher foi responsável pelo pecado, pela guerra de décadas entre gregos e troianos, e por roubar o meu coração — e o do nosso protagonista. No caso dele, uma atendente de um bar que ele frequenta assiduamente só para vê-la.
Seu momento de fraqueza é quando vê à distância a mulher com outro homem. Então se entrega à bebida e até ao cigarro, pensando que seria bom, mas isso rompe com a sabedoria de seus dias perfeitos.
Mais tarde, descobre que era o ex-marido dela, com quem tinha uma situação conturbada e que, prestes a morrer de câncer, só queria pedir desculpas. Então seu dia volta a ser perfeito.
Antes do fim, no meio do filme, sua sobrinha vai viver com ele por alguns dias. No começo, fica reticente com a diferença entre a vida da mãe (irmã do tio) e a dele. Nosso sábio diz: “O mundo meu e da sua mãe são muito diferentes.”
— “E qual é o meu, tio?”
Ele fica quieto. Cabe a cada um de nós descobrir.
Ela visita o emprego do tio e se constrange ao descobrir que ele limpa privadas. Acha estranho o hábito de ouvir fitas cassete quando existe Spotify. Porém, no fim, tocada pela grandeza da simplicidade, ela está ouvindo fitas, lendo, limpando banheiros por prazer. Admirada. Triste por ter que voltar para a casa luxuosa da mãe. Descobriu a riqueza do mundo do tio.
A trilha sonora, uma marca de Wenders, vai de The Kinks, Lou Reed e Velvet Underground. Mas a apoteose, o momento que fez lágrimas masculinas caírem dos meus olhos, é o desfecho. Quando ele se dá conta de que seus dias são perfeitos, e chora copiosamente ao som de Nina Simone — Feeling Good.
Nesse estado, não se pode ouvir música sem chorar.
“Porque tudo se manifesta e torna a desaparecer em só dia – mesmo que tenha durado de 31 de dezembro a 6 de janeiro – para além do calendário regular.”
DIAS PERFEITOS.