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DAVE LE DAVE
SIM, ELE MESMO
Textos


NÃO SOU FUNCIONÁRIO PÚBLICO. NEM IDIOTA.



O RECANTO DAS LETRAS, ORGULHOSAMENTE, APRESENTA:

 


 

Nem Contra, Nem Funcionário

Nada contra funcionários públicos. Inclusive, tenho amigos que são. Minha mãe, por exemplo. Eu adoraria sê-lo também — pela estabilidade — desde que fosse no mesmo posto em que trabalho hoje, perto de casa. Talvez, mesmo sem estudar, eu passasse num concurso, apesar da minha deficiência em exatas. Difícil seria me mandarem exatamente para onde eu quero.

 

Mas se acomodar não é legal, e na iniciativa privada, com certeza, posso ganhar bem mais.

 


 

Contrato é Lei, Bigode é Poesia

Meu ex-sócio me ensinou uma lição valiosa: não podemos contar com o bom senso das pessoas.

 

O bom senso é um conceito muito relativo. O que é bom senso pra mim pode não ser pra você. Por isso tudo deve ser tratado em contrato — especialmente em sociedade — e não no fio do bigode. Em empresas e demais relações sociais é o mesmo: não é possível contar com o bom senso. Por isso, temos que fazer a nossa parte, com responsabilidade.

 


 

Sou, Mas Não Sou

Na verdade, eu trabalho na prefeitura. Mas não sou funcionário. Sou contratado terceirizado. O contrato dura dois anos apenas.

 

Na real, nem com a prefeitura eu tenho ligação direta. Faço parte de um programa que visa a distribuição de renda. Um benefício do governo para oferecer capacitação profissional e gerar renda e oportunidade para quem está com dificuldade no mercado de trabalho.

 

Não é meu caso. Embora eu faça parte de um benefício do governo, tenho experiência de no mínimo um analista. Mas as pessoas valem pela sua raridade e pelo que estão dispostas a pagar por você — não pela sua competência, formação ou experiência.

 


 

Um Luxo Invisível

Apesar disso, eu sou um luxo.

 

Inglês avançado, domínio do pacote Office, criatividade, engenho, intelectualidade — isso não tem preço. Mas minha mãe arrumou esse emprego pra mim sem entrevista, apenas pela indicação dela, que é funcionária há mais de 30 anos. Eu estava num momento delicado. Foi importante. Ainda é.

 

O problema é que a prefeitura — ou melhor, o posto de saúde — não entende como funciona esse benefício. Ele não é pra ajudar o posto. É para ajudar o beneficiário: oferecer capacitação e distribuir renda.

 

Mas as pessoas invertem e se aproveitam.

 


 

Uma Ocupação (Mal) Remunerada

O contrato é simples: dois anos. Recebemos um salário mínimo para trabalhar seis horas por dia.

 

Com esse dinheiro, devemos pagar transporte e alimentação. Sem contrato formal, sem direitos, sem 13º, sem férias remuneradas. Porra nenhuma!

 

É uma ocupação remunerada. Uma gambiarra oficial.

 

Uma vez por semana, vou a Santana para uma “capacitação”. Não há método. O conteúdo depende do educador — que geralmente é bem fraco. Meu irmão brinca que eu poderia dar o curso. Mas eu não gosto de dar aula para vulgarizar meu conteúdo. Se nem aqui, numa rede de literatura, as pessoas têm ouvidos para meus ensinamentos, imagine num curso com pessoas em situação de vulnerabilidade.

 


 

Ocupando o Tempo, Não a Mente

Aproveito as quartas-feiras para passear. Escrevo, como estou fazendo agora. Nem presto atenção. Ainda assim, quando todo mundo fica quieto ou o educador me pergunta, sou sempre eu quem responde. Escada de educador. Para ele não ficar com cara de paisagem.

 

Como o deslocamento é mais longo, aproveito para ler. E apesar de tudo ser cansativo, pelo meu bom preparo físico, nem sinto o cansaço. Parece contraditório, mas é verdade: sinto sono, mas não me sinto cansado.

 


 

Vida Simples, Rotina de Campeão

Eu poderia ganhar o dobro, quase o triplo. Mas e minha qualidade de vida? E meu treino? Isso não me traria felicidade.

 

Se uma mulher se interessa por mim por dinheiro, está fazendo isso muito errado. Meu cartão fica com minha mãe. Peço a ela dinheiro pra sair. E toda quarta ela me dá R$ 50 pra eu comer numa padaria cara por lá.

 


 

Programa de Benefício, Não de Escravidão

Por mais paradoxal que seja, eu preciso mais do programa do que ele precisa de mim. Mas também não podemos ser trouxas a ponto de ignorar o espírito do programa.

 

Há pessoas que ganham um salário mínimo sem trabalhar, porque fazem parte do programa, mas não há postos disponíveis.

 

No meu posto, no entanto, tenho atribuições de funcionário público. Tenho senha real para marcação de consultas, me responsabilizo por cada agendamento — como se fosse servidor — e ainda querem que eu tenha acesso ao CROSS, o sistema da Secretaria da Saúde. Eu até usaria a senha da minha mãe, pra ajudar quem precisa. Mas não pelo posto.

 


 

Não é Pelo Posto, É Pelo Próximo

Chego às 14h. Por mim, iria embora às 18h. Mas fico até as 19h.

 

Não por consideração ao posto, mas pelos meus colegas de programa. Para que não haja comparações. Porque se fosse pelos funcionários…

 

Meu colega acha que sou funcionário dele! Nem da prefeitura eu sou! Um dia ele me deu uma chamada porque saí às 18h40.

 

Por isso que não se deve contar com o bom senso.

 

Os funcionários públicos entram às 14h e vão embora às 18h. E eu, que participo de um programa de benefício, sou cobrado pra fazer seis horas?

 

Esse colega que me deu a chamada faz seis horas também. Mas não conta que o contrato dele é de oito horas e ele recebe por isso. Vai embora às 19h, mas devia fazer oito. E vem falar do horário de alguém que ganha um salário mínimo, sem férias, sem benefícios, sem vale-transporte, nem alimentação?

 

Quer exigir de mim o que nem exige dos próprios servidores?

 


 

Espírito de Ajuda, Não de Capatazia

Eu trabalho pra ajudar quem precisa. Não o posto. Mas também não sou trouxa.

 

Não vou carregar o setor nas costas para meus colegas servidores ficarem de boa.

 

Faço o que é preciso. Mas não deixo montarem em mim.

 

Engraçado como eles têm a necessidade de anunciar no alto-falante o quanto trabalham. Quantas consultas agendaram… Mas não terminam o que começam.

 

Imagina se eu fosse ficar falando quantas pessoas atendi, quantas consultas informei… Ridículo. Ninguém vai te parabenizar por fazer mais do que sua obrigação.

 


 

Ninguém Monta em Mim

Eu não deixo que montem em mim. Não sou trouxa.

 

E se possível, sairei mais cedo. Pior é o que vão falar, sabendo do telhado de vidro dos servidores.

 

E como vão exigir de mim, sem exigir deles?

 

A gerente tampouco falar de mim porque tem um filho no mesmo benefício — ele falta mais do que comparece, principalmente no curso. Como ela vai falar de mim? Logo eu, que tenho postura exemplar?

 


 

Uma Rotina que Poucos Aguentam

Desde que fui afastado para me tratar da dependência, nunca mais faltei.

 

Antes, eu faltava porque não estava bem.

 

Hoje, chego às 14h porque volto da academia ao meio-dia, almoço, lavo a louça, deixo tudo arrumado. Costumo acordar às 5h30 para começar minha rotina. Preparo chá de hibisco com gengibre, treino em casa, preparo meu café. Tudo para estar na academia às 9H.

 

No máximo, quando consigo dormir bem, acordo às 7h.

 

Duvido que alguém tenha uma rotina tão concorrida quanto a minha.

 

Minha mãe também sai às 12h. Mas chega ao trabalho às 7h. Acorda às 4h30. Tem dupla ou tripla jornada, como muitas mulheres. Trabalha lá há 30 anos. Não há o que comparar.

 

Meu colega agora vai sair de férias remuneradas. Desde que entrei, já é a quarta vez que ele sai. Enquanto isso, eu ganho um salário mínimo e só descansei em feriados e quando fui afastado pra me tratar.

 

Ninguém pôs uma arma na minha cabeça. Estou onde preciso. Mas também sei dos meus direitos. E não sou trouxa.

 


 

O Coração da Questão

E ainda há o marido da médica cubana.

 

Ele não conseguiu validar o diploma pra ser médico. Faz a mesma coisa que eu. Também está no programa. Casado e com filho. Vive faltando pra cuidar da criança.

 

Ora, eu não tenho filhos. Mas duvido que ele acorde tão cedo e faça tanta coisa ao longo do dia como eu.

 

Mas é mérito da mulher, sendo médica, aceitar esse marido. Acho que ele tem um coração grande… de uns 23 centímetros. E bem grosso.

 


 

O Milagre da Sobrevivência

Hoje, opero um milagre laico.

 

Consegui viver com elegância, ser culto, confortável — e estar na iminência de comprar um celular de R$ 9 mil ganhando um salário mínimo.

 

Compro suplementos, pago transporte, como bem…

 

Desde Jesus, com os pães e vinhos, não se via um milagre assim.

 



DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo)
Enviado por DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo) em 07/05/2025
Alterado em 07/05/2025
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