Raiva e amor são mais parecidos do que se imagina. Quem nunca sentiu raiva pela pessoa que ama por algo que ela fez ou deixou de fazer?
Raiva é momentânea, um afeto. Não é um estado, como ódio ou amor. Eu até usaria o eufemismo “rancor”, mas ele não serviria bem para o título.
Houve momentos em que eu sempre sentia dor na consciência, ou pesar. Eu procurava o perfil de quem amo para me lembrar dela, com remorso — como quem pede perdão pela fraqueza, buscando redenção, como quem se confessa diante do padre em busca de remissão por seus pecados.
Assim, procurava a imagem santa de quem amava.
Hoje ando tão ocupado que meu amor é súbito — como Zaratustra fala de sua fome. Tem dias em que ela só aparece à noite, e lembra alguém que, de tão atarefado, passa o dia inteiro sem pensar em comida. De repente, subitamente, ela o sequestra.
É marcante a passagem em que, com um morto nas costas, Zaratustra para numa choupana na floresta. O eremita abre a porta e pergunta: “Quem bate a essa hora?”
“Um morto e um vivo”, diz Zaratustra.
“Entre para dentro. Não são bons tempos pra fome. Por isso abriguei minha cabana aqui na floresta, para dar de comer a quem precisa — homens e animais. Mas entre, e dê comida para seu amigo, que ele parece estar mais cansado que tu.”
“Está morto, meu amigo”, diz Zaratustra. “Será difícil convencê-lo.”
“Não tenho nada com isso”, responde o eremita. “Quem aparece em minha cabana pedindo comida tem que comer. Comei e passai bem!”
E assim, como Zaratustra, ando tão ocupado que passo um dia inteiro sem pensar nela. Dias em que não pesquiso seu perfil — quando antes eu olhava várias vezes no mesmo dia — e, de repente, a saudade irrompe no meu peito e eu a procuro.
Sem novidades.
Às vezes penso que meu amor é como o morto que ele carregava nos ombros, para sepultá-lo dignamente com as próprias mãos, pelo ofício.
E a raiva, que às vezes se transforma no que é predominante… o amor vem da falta de respostas, de notícias, até da questão da presença.
Quem é tão pobre que se contenta com um amor assim, afinal?
Apesar de você buscar sua melhor versão diariamente, nunca é o suficiente. Saber o seu valor e se valorizar é importante para que outros nos amem também. Amor-próprio.
Quem não faz questão de nossa companhia — como será passível de nos valorizar?
Enquanto a consciência mostra que as outras pessoas do convívio dela, em detrimento de nós, desvalorizam nosso valor… eu não abaixo. Sei do meu valor.
Até raridade: eu venho trabalhando em mim mesmo com a finalidade e o propósito de me tornar cada vez melhor. E acho que ando fazendo um bom trabalho — e ainda irei melhorar muito.
Meu teto de evolução ainda é alto, embora eu sempre coloque o sarrafo lá no alto.
Quem tiver olhos para ver e ouvidos para escutar, que veja e escute.
Quem puder me acompanhar vai ver — e vai ser bonito de observar, eu garanto.
Já está sendo, na realidade.
Quem não faz questão da minha companhia, eu lamento por mim — mas com consciência e lucidez, hoje lamento mais pela própria pessoa.
E a cada dia que passa, a cada esforço, cada ação, cada gesto, cada expressão… isso ficará mais evidente.