É cada texto aqui no Recanto que eu leio tentando atribuir uma frase a Nietzsche. E só de ler, eu sei que é um apócrifo, porque se fosse ele que tivesse escrito esse texto de autoajuda, ele não teria sido o autor que mais li e conheço na vida.
E por conhecê-lo, até seus escritos póstumos, sei que jamais escreveria uma banalidade dessas. Mas uma frase que asseguro que é dele é a do meu título: ele aprendeu a alquimia de transformar merda em ouro. Há os que fazem o contrário — Midas ao avesso — transformam ouro em merda.
Raskolnikov não é tão tolo quanto Dostoiévski o pintou. É só parcialmente falsa a teoria dele de homens extraordinários versus ordinários. O que estava incorreto era a prática de ele se colocar como extraordinário e interpretar o extraordinário de modo reativo, pela fuga do crime, da extirpação, e não da vontade de potência criadora.
Ele sucumbiu ao próprio crime e à sua mediocridade. Porém, não é mentira que a humanidade se divide em extraordinários e ordinários. Os primeiros são uma minoria infinitesimal, os segundos pululam e poluem a humanidade. E, infelizmente, por serem maioria, governam o mundo.
Isso se repete em todas as áreas: o extraordinário mostra seu império — na inteligência, beleza, distinção, elegância, físico, talento. Já os ordinários são números, zeros à esquerda. Por mais que sejam numerosos, não valem nada sem um decimal significativo à sua frente.
Paulo Leminski, que em talento é extraordinário, gostava de usar exemplos da área atlética porque nela o talento, o extraordinário, não só é mais perceptível como também exaltado. Ele era atleta, faixa preta de judô, mesmo sem ter um porte físico atlético.
Isso demonstra que a maestria não depende necessariamente do físico, mas da técnica, da execução, da inteligência.
No esporte, os atletas profissionais tecnicamente — e até de talento — salvo raras exceções, são quase do mesmo nível. O que os diferencia é a cabeça: o aspecto mental, a inteligência para treinar, se aprimorar, atualizar-se, competir. A força psicológica.
Aqui, é muito perceptível que o talento, a capacidade que Aristóteles chamava de dynamis, não é nada sem sua constante atualização — a energeia. A dynamis pode ser algo inato, mas ela não é nada sem a energeia, o exercício constante, a evolução.
Isso é um exercício mental, psicológico e emocional. Como na parábola dos talentos de Cristo: o esforço faz prosperar as dádivas, e as dádivas sem esforço se esgotam.
Os grandes atletas, seres extraordinários, ou nasceram com uma dynamis incomensurável, ou têm uma energeia prática extraordinária — que é o que importa. Quanta gente talentosa não ficou pelo caminho? Quantos jogadores craques só jogaram na várzea?
Não tinham o aspecto mental, o profissionalismo.
É interessante a fala do melhor filme da história do cinema, na opinião deste humilde escriba: Era Uma Vez na América. Noodles (meu xará David) fala para o gordinho irmão da Deborah, amor da sua vida, que ninguém apostaria que ele seria um negociante de sucesso.
O gordinho responde que apostaria todas as fichas nele. Noodles diz que então ele erraria.
Talento sem atualização é desperdício. Evoluir sempre faz a diferença. Como o slogan da Fisk.
Finalmente, chegamos ao título. Essa alquimia que a energeia opera é a força inata que transforma merda em ouro. A condição adversa da vida vira superação.
Na terça-feira, encontrei o irmão de um grande amigo do colégio. Há anos, ele era muito — mas muito — evangélico. Hoje, não o reconheci. Muito gordo, ele que era um ébano de tirar o chapéu, que “comia até as professoras”, hoje parece que comeu a si mesmo, de tão enorme.
Ele me reconheceu. Eu nunca o teria reconhecido. Apertei as lentes de contato e lembrei. Eu, trajado no meu último look: saudável, esbelto, melhor do que nunca. Elegantíssimo. Soberbo. Exalando saúde.
O contraste era gritante.
Ele iria beber, quase na véspera do nascimento do filho, em plena pré-véspera de feriado. Eu, indo para casa: jantar, treinar, dormir.
Curiosamente, disse que encontrou meu pai um tempo atrás, e ele passou minha caminhada inteira para ele — “meu histórico de ex-dependente químico”. Lembrei que naquela época meu pai falou que ele iria orar por mim.
Não sei se as orações deram certo, mas minha força mental e de vontade sim. Porque quem olha para nós dois hoje diria que ele é o ex-adicto e eu o pastor.
Até pela coincidência do look com gravata. Chegaram a me perguntar se eu ia à igreja dali. Respondi com minha língua afiada de sempre:
“No dia em que um pastor evangélico se vestir com a minha elegância, eu viro evangélico também.”
Piada, comentário afiado, mas totalmente verdadeiro. Eles que são inimigos da vida e da moda.
Na minha oração, peço a Deus, não pelo milagre, mas que simplesmente me dê saúde e sabedoria — como a de Salomão — para encontrar o melhor caminho, as soluções. Continuar aprendendo.
Não peço que seja feita a Tua vontade, Senhor, mas que seja feita a minha própria — e que ela possa coincidir com a de Deus.
Sem heresia. Como diz Leminski: “Quem sou eu para falar com Deus? Ele que cuide dos problemas dele.”
O mandamento que sigo é o da criação. E com minha criação — de mim como obra de arte — e da minha obra, inspiro pessoas a serem melhores. Isso é o extraordinário para mim.
Quem sabe, ironicamente, ao me ver, o irmão do meu colega largue a bebida e pegue um haltere?
Clóvis, que me inspira, dizia da importância de ter brio.
Ora, se Kant é para 1% da humanidade, se ler as Críticas da Razão Pura, Prática e do Juízo é para poucos, é para os extraordinários, então é para mim.
Dá a porra do livro que eu vou ler e entender também. E a mesma coisa com abdômen definido. Se é para poucos, é para mim também.
Exemplo: o grande lance de Kant era dizer (ou inventar, como diria Nietzsche) o conceito de juízo sintético a priori. Ora, uma coisa a priori é um juízo que não depende da experiência — é algo da pura razão.
Mas uma síntese depende da experiência. Dizer que existe um juízo sintético a priori é como dizer que certas verdades experimentais já nascem com a gente.
(Exemplo: é como alguém saber, só de olhar um livro de Paulo Coelho, que o conteúdo será medíocre — sem precisar ler. É um juízo sintético a priori.)
E mesmo tirando essa afirmação do seu cu…bículo, isso fez de Kant um ser extraordinário entre os homens. Assim como são os que o entendem, o explicam, o admiram.
Esses inspiram. Esses são capazes de transmutar merda em ouro.
Esses sabem que, como dizia Peter Parker: “Grandes poderes exigem grandes responsabilidades.”
Esses seres — que conectam Nietzsche, Kant, Dostoiévski, vida, esporte, poesia, crônica, humor e cinema — são os extraordinários.