Tudo começou com o convite de um amigo que trabalha comigo para participar de uma luta indiana chamada Kempo, da vertente do Vajra Mushti. É uma arte de tradição milenar, que existe há mais de sete mil anos. Como gosto dessas coisas exóticas, fui sem titubear.
Quem quiser ver como foi minha experiência, basta acessar o link abaixo para o perfil do professor Christian e tentar me identificar nas imagens — como se fosse um “Onde Está Wally?”.
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O local era distante, no extremo oposto de onde resido. Chegando lá, fomos recebidos por um rapaz muito gentil, dono da residência, que também é professor de capoeira. O espaço é confortável e consiste num salão amplo, vazio, com espaço suficiente para se locomover livremente. Tudo muito bem cuidado, limpo e naturalmente arejado.
No início, o cheiro do incenso — ao qual não estou acostumado — me incomodou, e fui tomar ar lá fora. Engraçado como a ideologia por trás da luta indiana, com tanta tradição, preconiza a relação das forças energéticas do corpo com a comunhão com o todo inteligente: átomos que se unem de forma coerente formando o universo.
A pedância da sociedade ocidental tenta reivindicar essa filosofia do corpo, das forças ocultas, para si. Influências de Schopenhauer e Nietzsche — o grande fundador da pós-modernidade — desaguam posteriormente em discípulos como Deleuze, que fundou a esquizoanálise: um modo de análise que contrapõe a psicanálise tradicional, buscando entender o esquizo (ou analisado) fora do consultório. A proposta é mapear as relações do interior com o exterior e como essas conexões produzem ou diminuem nossa energia vital, conforme os bons ou maus encontros.
Fazendo um paralelo com a minha experiência, toda aquela novidade e estranheza inicial causaram um certo desconforto em mim, um ocidental. A arte, a princípio, diminuiu minha potência de agir, minha energia vital. Mas, à medida que o professor Christian começou a explicar a teoria por trás da luta e como ela coincidia com minhas ideias, fui me sentindo mais à vontade.
Ainda assim, no início, os movimentos me pareceram exóticos. A arte tenta imitar animais, buscando libertar e aprender a domar nossos instintos mais primitivos, até que possamos dominar a dor e transformá-la em aprendizado. O objetivo: agir com o menor esforço possível.
Tudo isso converge com a minha ideia de que toda boa ação é inconsciente — a ação pensada é mecânica; a ação natural é fluida como a água. A gente se conecta com o ambiente, faz parte dele, e isso só é possível por meio da constância e da repetição.
Conforme o professor explicava, ele evidenciava como ninguém tira nada do nada — e como Nietzsche e Schopenhauer foram influenciados pela sabedoria oriental para formular sua filosofia teratológica e do corpo. A própria arte do Kempo, segundo ele, tem muita influência da mitologia grega. O céu e a terra eram uma unidade, como diz a Teogonia de Hesíodo: Gaia, a terra, e Urano, o céu, geraram os titãs, até que Cronos castrou Urano, libertando Gaia, criando assim o tempo.
Nossa energia vital, nesse sentido, seria Eros — como na mitologia grega.
Desconheço até onde vai o conhecimento do professor sobre Nietzsche ou o pós-modernismo de Deleuze, mas ele parecia o próprio Zaratustra: falava de falsos profetas que vendem fórmulas como se fossem verdades, sobre a oscilação da mente, a ausência de presença, a importância do amor fati, da relação entre a energia do corpo e o meio ambiente. Tudo muito nietzschiano.
Mas, ironicamente, como todos nós somos vontade de potência, ele próprio também era um guru. Um Zaratustra indiano, tentando exercer sua vontade de potência, sendo mestre, moldando o mundo à sua imagem — consciente ou inconscientemente. E ainda que isso soe contraditório, ambos os caminhos são legítimos, pois conduzem à sua singularidade e não ao ressentimento com o mundo externo.
Sempre que você adentra uma nova cultura, precisa estar aberto a vivê-la plenamente. No meu caso, o estranhamento, a indisposição, o cansaço, a dor de cabeça — tudo isso fez minha energia diminuir. Mas, à medida que os exercícios se tornaram menos abstratos e eu me senti mais integrado, fui me soltando e queimei boas calorias.
Com licença poética, pode-se dizer que o guerreiro indiano Dhalsim, do Street Fighter, é um lutador de Kempo — embora, no jogo, sua arte seja chamada de Yoga. As duas tradições têm muito em comum, afinal, ambas vêm do Oriente e compartilham uma filosofia que transcende o simples combate.
É curioso como o Kempo já afirma que pode ser praticado em todas as idades. E, curiosamente (ou não), nossa turma parecia um microcosmo do Brasil: cosmopolita e diversa, com todos os tipos físicos e idades. Loiras maduras, japonesas, negros, morenos, gays, gordos, jovens, beldades de beleza europeia e brasileira. Uma garota de cabelo curto e face avermelhada, corpo escultural, muito bela, acompanhada por um rapaz forte — seu namorado, aparentemente. Era uma verdadeira torre de Babel.
O momento mais apoteótico foi o desfecho, que me emocionou profundamente. Lágrimas inteiramente masculinas quase escorreram do meu rosto másculo e viril. Ao som de um canto sagrado — uma arte milenar com instrumentos tocados por professores que estão entre os poucos a dominá-los no Brasil — entoamos juntos uma harmonia indescritível, um som belo que poderia competir com a harpa de Apolo.
Em uma aula inaugural, o professor conseguiu transmitir magistralmente tudo o que o Kempo propõe: a libertação e dominação dos nossos instintos, a vitalização da energia através de bons encontros com o mundo exterior, a amizade com a terra — essa Gaia Ciência que Nietzsche retirou diretamente da sabedoria ancestral.
No final, senti-me em comunhão com meu corpo e com a terra. Sem dor, milagrosamente, mesmo tendo me jogado ao chão diversas vezes. Fui embora com um sorriso de orelha a orelha. Quem olhasse para mim juraria que eu tinha transado.
O prazer que a aula gera é, de fato, semelhante a um orgasmo. E repetirei assim que possível.