Talvez Shakespeare seja o autor que mais li em quantidade de obras. Não apenas por sua genialidade, mas porque era prolífico: escreveu muito, e suas peças têm uma leitura fluida, rápida, quase teatral no tempo da nossa mente.
Já li quase tudo o que produziu — mais de uma vez. Suas peças históricas, as comédias que marcaram seu início e, claro, as tragédias, que são as minhas preferidas.
Em vida, Shakespeare foi uma exceção entre os gênios: teve fama, dinheiro e reconhecimento. Diferente de tantos outros que morreram no anonimato ou na miséria, ele brilhou ainda em carne e osso.
Era conhecido como um libertino, e há indícios sólidos de que tenha sido bissexual — com especial predileção pelo sexo masculino, como sugerem vários de seus sonetos mais intensos, escritos para o misterioso “Fair Youth”.
Apesar de ter escrito um protagonista negro (Othello), Shakespeare permanece símbolo do status quo e da aristocracia britânica. Afinal, Otelo, o príncipe mouro “negro retinto de lábios grossos”, como ele mesmo se descreve, era tradicionalmente interpretado por atores brancos pintados de preto — o chamado “blackface”, herança de um tempo racista mascarado por teatro.
Minha peça favorita? Hamlet, sem hesitação.
Hamlet é o personagem mais interessante e bem resolvido de Shakespeare. Eu me vejo nele: seu modo taciturno, gótico, sóbrio — sempre pensando, refletindo. Sua eloquência é afiada como navalha. Vence todos os duelos retóricos, exceto aquele com o coveiro, simples e camponês, que o derrota com a única arma invencível: a verdade nua da morte.
Frases como “Ser ou não ser, eis a questão” atravessam séculos. Hamlet diria que viveria livre, mesmo confinado numa casca de noz, desde que pudesse pensar. Fingiu loucura, mas havia “tanto método em sua loucura”.
E é nessa peça que encontramos o melhor conselho paterno da dramaturgia: Polônio aconselhando seu filho Laertes com palavras que atravessam o tempo como uma flecha reta:
“To thine own self be true” — “Sê fiel a ti mesmo.”
Minha segunda peça predileta é Macbeth. Nele, me vejo na queda: como alguém que sucumbiu à ambição.
Kurosawa adaptou brilhantemente essa obra em Trono Manchado de Sangue, transpondo a Escócia medieval para o Japão feudal. A figura de Lady Macbeth — ardilosa, manipuladora, dominadora — talvez seja uma das personagens femininas mais vis de toda a literatura.
No terceiro lugar do meu pódio está Otelo, o mouro que ascende socialmente e ama uma mulher branca e bem-nascida. Me vejo nele: um homem de fora, que conquista o mundo onde não nasceu. Mas me distancio do seu ciúme doentio — ele era forte pela força bruta, não pela sagacidade.
Ao contrário de mim.
Desdêmona talvez seja a mulher mais atraente de Shakespeare — e inspiração para Capitu, em Dom Casmurro. Já o vilão da peça, Iago, é, para mim, o melhor vilão shakespeariano: manipulador, cínico, frio, engenhoso. Um arquétipo do mal sem motivo — mal puro.
É notório o uso do fantástico em Shakespeare, sempre com uma verossimilhança desconcertante. O sobrenatural emerge com naturalidade: as bruxas em Macbeth, o fantasma do pai em Hamlet, os espíritos e encantos de A Tempestade.
Essa última, aliás, é uma comédia trágica que inspirou Brave New World, de Aldous Huxley, a partir da fala de Miranda ao ver um ser humano pela primeira vez:
“O wonder!
How many goodly creatures are there here!
How beauteous mankind is! O brave new world
That has such people in’t!”
Tradução:
“Oh, maravilha!
Quantas criaturas belas há aqui!
Quão belo é o gênero humano! Oh admirável mundo novo,
Que tem gente assim!”
Minha comédia predileta é A Megera Domada, que inspirou a excelente novela da Globo O Cravo e a Rosa, com os personagens Petruchio e Catarina reencarnados com o mesmo sarcasmo e paixão.
Muito Barulho por Nada também é excelente, com sua crítica ao orgulho e às convenções sociais, embrulhada num ritmo ágil de diálogos que antecipam o cinema moderno, ou Uma Comédia de Erros, que parece um filme dos irmãos Coen, Fargo, talvez.
É curioso como os arquétipos de Shakespeare, moldados entre espadas, coroas e fantasmas, encontraram ecos inesperados nos corredores de uma vila mexicana. Roberto Gómez Bolaños, o eterno Chespirito — apelido carinhoso que vem justamente de “pequeño Shakespeare” —, construiu um universo que, embora enraizado no humor popular, reverbera a profundidade do Bardo inglês.
Bolaños não escreveu tragédias em cinco atos, mas, como Shakespeare, criou personagens universais, atemporais. O órfão sonhador, o tolo sábio, o vilão desastrado, a donzela idealizada, o velho ranzinza. El Chavo del 8, Chapolin Colorado, Dr. Chapatin, todos carregam o DNA da comédia humana — o mesmo que Shakespeare moldou com Falstaff, Puck, Malvolio e tantos outros.
O Chaves é, em essência, um Hamlet sem castelo: órfão, pobre, vivendo num barril — mas com a alma cheia de perguntas silenciosas. Quase nunca fala de seus pais. Não tem sobrenome, nem passado claro. A vila é seu palco, o barril seu monólogo. E como Hamlet, Chaves observa o mundo ao seu redor com uma sensibilidade que poucos entendem.
Seu contraponto, o Seu Madruga, é um Falstaff latino-americano: covarde às vezes, mas com uma sabedoria de esquina. Diante da pobreza, responde com sarcasmo. Diante da injustiça, com resignação. E como Falstaff, conquista não pela nobreza, mas pela humanidade crua.
Florinda, a mãe possessiva; Quico, o mimado, vazio e caricato — um Ricardo II de bochechas infladas; Dona Clotilde, a Bruxa do 71, que carrega os ecos das feiticeiras de Macbeth; Professor Girafales, o eterno enamorado educado, figura quase cortesã em sua retórica educada e flertante.
E Chapolin Colorado, o anti-herói que antecede os heróis frágeis da Marvel — é um Macbeth às avessas, que luta apesar do medo, que triunfa pelo coração, não pela ambição.
Como Shakespeare, Bolaños sabia que rir é a forma mais inteligente de sobreviver. Que a comédia, quando feita com verdade, é tão profunda quanto a tragédia. E que personagens bem criados vivem para sempre — mesmo quando falam com sotaque ou vivem num barril.
Ambos deram voz aos marginalizados, aos tolos, aos que erram. Ambos sabiam que o palco é o lugar mais sincero do mundo, porque ali todo fingimento é revelação.
Shakespeare deu ao mundo Hamlet. Bolaños deu ao mundo Chaves. E os dois, com suas plumas tão distantes no tempo, tocaram o mesmo nervo: a humanidade.
Curiosamente, minha peça menos preferida é justamente a mais conhecida: Romeu e Julieta.
Acho que essa supervalorização revela que, muitas vezes, a unanimidade é burra. A história do amor idealizado, sacrificial e juvenil me soa rasa diante das complexidades de Hamlet, das ambições de Macbeth, ou do veneno de Iago. É uma peça bela, mas me parece a mais ingênua e romantizada — o que, talvez, explique seu apelo popular e sua contínua adaptação para o cinema, teatro e televisão.
Nos romances históricos, encontramos figuras como Ricardo III ou Júlio César. De César, ecoa eternamente o grito da traição:
“Et tu, Brute?”
E de Ricardo III, o desespero dramático:
“My kingdom for a horse!” — “Meu reino por um cavalo!”
Nessas peças também aparece um dos personagens mais queridos e recorrentes de Shakespeare: Sir John Falstaff — o beberrão espirituoso, bonachão, covarde e carismático. Ele é o “Cid” do universo shakespeariano: assim como Final Fantasy sempre tem um personagem chamado Cid, Chocobos e Moglis, Shakespeare sempre dava um jeito de trazer Falstaff de volta — como alívio cômico e crítica social disfarçada de riso.
E depois que você lê Shakespeare, depois que você respira as tragédias e ri das farsas, depois que você vê seu reflexo em Hamlet, Macbeth, Otelo — o resto é silêncio.
“The rest is silence.”