A esquerda aplaudindo efusivamente o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro para Ainda Estou Aqui tem algo de contraditoriamente cômico.
O Oscar é uma festa burguesa que representa o status quo, e todos os filmes que ganham o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, inevitavelmente, possuem orçamentos menores do que os filmes de Hollywood. Só o fato de existirem premiações destinadas a filmes estrangeiros, em detrimento dos filmes americanos, que não são falados em inglês na maioria, é um tipo de apartheid cultural, tratando-os como arte menor.
No entanto, o cinema é uma arte universal. O que isso quer dizer? Que o melhor filme de fato seria o americano, seguindo a fórmula hollywoodiana, e o melhor filme estrangeiro, embora bom, acaba sendo uma espécie de menção honrosa ou prêmio de consolação, uma “medalha de mérito” por reconhecimento. São raros os filmes não falados em inglês que ganham o Oscar de Melhor Filme, como Parasita (2019), de Bong Joon-ho, mas até eles seguem, em grande parte, a estrutura hollywoodiana.
A Palma de Ouro, prêmio mais relevante artisticamente do que o Oscar, faz essa distinção, conferindo a palma ao melhor filme e o Grand Prix (o Grande Prêmio) ao segundo, ou ainda o Prêmio do Júri, para menções honrosas. Essa estrutura mostra o tom arbitrário da premiação norte-americana, que foi desvirtuada pelo politicamente correto e hoje mais parece uma convenção da ONU.
É paradoxal essa torcida maniqueísta da esquerda, que, ao mesmo tempo, apoia um filme de um cineasta que vem das famílias mais ricas do Brasil, como o diretor Walter Salles, cuja obra Ainda Estou Aqui foca em uma família de classe média alta vivendo em um “dolce far niente”.
No filme, a figura de Rubens Paiva, interpretada por Selton Mello, é idealizada, contrastando com o personagem real de Paiva, que foi um militante combativo e que, certamente, não teria recebido pacificamente os depoimentos. Isso pode ter motivado sua morte, embora isso não justifique as ações que levaram ao seu assassinato.
Mas Ainda Estou Aqui é um filme feito para agradar à premiação, não para denunciar a ditadura, evidentemente o terror da ditadura. A denúncia não pode ser feita por um banqueiro; ela deve ser feita por um artista, como o cineasta Glauber Rocha, que tem uma obra mais engajada nesse sentido.
Me sinto confortável em fazer essa crítica abrangente porque já resenhei o filme aqui, reconhecendo todos os seus méritos artísticos. Quem quiser pode ler minha resenha clicando no link: O Terror da Ditadura em “Eu Ainda Estou Aqui”
Não sei quem foi o ilustre pensador que disse que o Brasil tem o defeito de, a cada 15 anos, esquecer o que aconteceu nos últimos 15. Essa reflexão parece se encaixar perfeitamente no contexto de Ainda Estou Aqui, que, diferentemente de filmes como Cabra Marcado para Morrer (1984) de Eduardo Coutinho ou Pra Frente, Brasil (1982), dirigido por Roberto Farias, não é um filme de resistência.
É um filme que, apesar de ter méritos, com a força da premiação, tenta lançar um olhar mais suave sobre os horrores da ditadura, mas, ao fazê-lo, nos faz esquecer que esse não é o primeiro Oscar do Brasil.
Em 1959, o Brasil conquistou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro com Orfeu Negro (Orfeu Negro), dirigido por Marcel Camus. A obra, além de ter personagens negros e ser ambientada no Brasil, na favela carioca, é falada em português e possui uma trilha sonora composta por Vinicius de Moraes, com arranjos de Tom Jobim. Ou seja, mais brasileiro impossível.
E não foi só o Oscar que reconheceu o filme: Orfeu Negro também ganhou a Palma de Ouro em Cannes, uma premiação muito mais relevante. Assim como O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte, que foi premiado com a Palma de Ouro, reconhecimento infinitamente mais significativo que o Oscar.
Tanto O Pagador de Promessas, ao abordar a religião e a riqueza das crenças no Brasil, quanto Orfeu Negro, ao representar os negros e pobres, retratando-os sob a ótica de Vinicius como figuras mitológicas, mostram a riqueza cultural e social do país.
Como lembrou a brilhante Recantista Isabela Banderas em sua crítica ao filme Ainda Estou Aqui, ele é muito diferente de filmes como Pra Frente, Brasil ou Cabra Marcado para Morrer, que foram feitos durante o regime militar e criticavam abertamente a ditadura. Comparado a eles, o filme de Salles, por mais que ajude a lançar um olhar sobre o terror da ditadura e rememorar certos aspectos, ainda soa como chapa branca.
Mas a visão maniqueísta, tanto da esquerda quanto da direita, ignora e reflete de forma irrefletida. Esse clima de Fla-Flu não permite uma análise mais aprofundada do que realmente representa o Oscar, sem essa visão apaixonada e polarizada.
Por exemplo, o filme Ainda Estou Aqui lança luz sobre a barbárie do terror da ditadura e tenta mostrar aos críticos da cultura e da Ancine que é possível fazer arte de qualidade no Brasil, com a legitimação de um prêmio simbólico, embora burguês e vazio, como o Oscar.
Salles e Ainda Estou Aqui, assim como Central do Brasil (1998), são grandes filmes de um grande cineasta autoral, mas não possuem a força do cinema de um Glauber Rocha. Não representam o Brasil na profundidade que ele soube capturar, seja na beleza cultural do sertão, nos símbolos religiosos ou no faroeste brasileiro de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e Terra em Transe (1967), que continuam sendo atuais e representando a sujeira da nossa política até os dias de hoje.