Me pergunto o que ela anda fazendo no momento. Talvez praticando yoga, enquanto o descafeinado fica pronto—claro, porque é mais saudável, e para manter aquele corpo ela deve ter esses cuidados. Mais cedo, quem sabe, pode ter ido ao mercado e, enquanto fazia os cálculos para as despesas caberem no orçamento do mês (ah, tudo está tão caro, essa bendita inflação!), talvez tenha passado pelo caixa, escutado o clássico “CPF na nota, jovem?” e, nesse instante, será que pensou nesse humilde escriba?
Era só tirar o celular do bolso, rapidinho, e dar uma espiada nesse site gozado chamado Recanto das Letras. E que nome sugestivo, não? “Recanto” remete a algo idoso, um lar de velhinhos, cheiro de naftalina. Não há o Recanto dos Artistas? E o que há de mais velho, de mais fora de moda hoje em dia do que as letras, as palavras, a linguagem escrita, sufocada pelo império da imagem, do vídeo, do imediato, do efêmero—como diria Lipovetsky? O nome, portanto, Recanto das Letras, foi uma sacada de mestre!
Oi, webmaster, se você me lê, ficam aqui os meus parabéns, viu? E, sim, eu aceito retribuição em forma de gratuidade na minha assinatura premium no site de vocês.
Mas será que ela resistiu à tentação, mesmo tendo apagado o site? Esse magnetismo irresistível que exerço? Como diz no refrão da excelente música do Pixies, Hey: “We’re chained”.
Contrariando o senso comum, dizem que a gente pode mentir para os outros, mas não para nós mesmos. No entanto, a fuga dela é a prova de que, sim, podemos nos enganar. As mentiras mais frequentes, como diz Nietzsche, são as que contamos para nós mesmos, não para os outros.
Mas será que essa decisão trouxe felicidade? Será que é verdadeira? Será que quem me bloqueou não continua me lendo? DEUS ESTÁ VENDO!
Não é possível admirar um belo jardim sem imaginar que há fadas vivendo nele? Eu sou um belo jardim, ok, mas não há fadas, duendes ou gnomos por aqui! Sou príncipe, às vezes, mas não encantado. Se me beijar, vai ser só gostoso—mas não espere que eu fique ainda mais bonito do que já sou, porque isso não vai acontecer, não. Ok?
Mas a retribuição que eu tenho é de forma indireta. Deleuze chama de voluptas o prêmio residual que sai da máquina celibatária do corpo sem órgãos, de tudo que ela põe a girar através de sua obra. Traduzindo esse conceito pomposo e intelectual, quer dizer que o prêmio que eu recebo pelo que escrevo ou pelo que sou pode não vir através da fruição, do amor ou do gozo diretamente. É a influência positiva que percebo nos detalhes.
É perceber que uma mulher está mais confiante consigo mesma por minha causa, algo que pode ser mostrado no fato de ela estar escrevendo mais no Recanto das Letras, se sentindo mais criativa pelo meu incentivo e comentário. Isso, para mim, já é gratificante e não tem preço. O amor, até cientificamente, transforma o humor das pessoas, melhora a qualidade da pele, então não é bom fugir dele, reprimi-lo, e sim fazer o possível e impossível para vivê-lo.
Pensar que seu modo de ser pode inspirar pessoas. Por exemplo, meu modo educado e gentil de atender o público. Perceber que minha companheira de trabalho se veste e compra as melhores roupas para estar bem-vestida diante de mim — não especificamente para mim, mas perto de mim, ou por minha influência. Ou que sou digno de confiança a ponto de uma mulher casada há mais de 30 anos com o mesmo homem se sentir à vontade na minha presença, dizer que estou mais bonito do que nunca e não temer me oferecer carona num dia chuvoso só para mim, quando tem resistência em ficar sozinha com outros homens.
Não sei as intenções dela, se havia algo oculto ou se era apenas um gesto de boa vontade. Mas, ainda assim, houve boa vontade, uma vez que ela esperou dar meu horário de ir embora — uma hora depois — fingindo fazer outra coisa e insistiu na carona.
E não é só no sexo feminino. Talvez por despeito de eu andar sempre bem arrumado, meu colega de trabalho começou a ir mais alinhado, de camisa social também. Eu gosto disso. De certa forma, influenciar indiretamente as pessoas só pelo meu modo de ser, criar tendências mesmo sem falar nada, é valioso e indescritível.
E a coroa casada dizendo que prefere ler um livro a assistir televisão… Sei. Ela, que pergunta a grafia de palavras simples. Mas vai ver é verdade, né? Talvez só tenha dificuldade de memorizar.
Eu sou como Midas. Minha recompensa é como o prêmio de Midas. Você sabe que ele abrigou o sábio Sileno, preceptor do deus Dionísio, que, como não poderia deixar de ser, simbolizava os prazeres mundanos, a sensualidade e a orgia. Sileno, caído de bêbado por causa da bebida, foi acolhido por Midas, e, como recompensa, Dionísio concedeu ao rei qualquer desejo. Mas Midas, conhecido mais por sua ganância do que por sua inteligência, escolheu que tudo o que tocasse virasse ouro.
Dionísio, já prevendo o desfecho trágico, atendeu ao pedido. E logo a bênção se revelou uma maldição: ao tentar se alimentar, viu sua comida transformar-se em ouro, sua bebida virar pó dourado. O que era riqueza tornou-se desespero. Por gratidão, e talvez por piedade, Dionísio aconselhou-o a lavar-se no rio Pactolo, cujas águas, desde então, passaram a jorrar ouro, quebrando o feitiço.
Eu também pareço ter um toque de Midas — mas, infelizmente, um toque amaldiçoado. Como ele, não consigo usufruir do meu próprio ouro. Só posso admirar, à distância, a beleza que produzo e seus efeitos, sem realmente vivê-los. Sem gozar do amor, da pessoa que amo, que inevitavelmente se afasta. Mesmo depois de já ter me banhado nas águas do Pactolo.
Mas então, é esse tipo de gratificação indireta que recebo ao fazer as pessoas, talvez, se tornarem mais sábias com meu conteúdo, mais confiantes consigo mesmas. Talvez eu consiga demonstrar e compartilhar meu amor pela literatura, filosofia, cinema, música e artes em geral, e a importância que tiveram na minha vida. Ser para as pessoas, por exemplo, o que Godard foi, o que Clóvis de Barros foi para mim, já é uma forma de retribuição.
Mas algumas pessoas acham que talvez não tenham nada a aprender ou que já têm o suficiente em suas vidas. Preferem a fuga, mas fica a pergunta: a fuga de mim ou delas mesmas? Enquanto isso: DEUS ESTÁ VENDO — que você apagou sua conta ou me bloqueou, mas continua me lendo. E tenho certeza de que isso faz mais bem do que mal.