Numa das minhas cenas prediletas do meu filme predileto, dirigido por um dos meus diretores prediletos, O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou), vemos Ferdinand Griffon — interpretado por Jean-Paul Belmondo — imerso na banheira, lendo tranquilamente para uma criança um trecho da biografia de Velázquez:
“O mundo em que ele vivia era um mundo de tristeza: um rei degenerado, infantes doentes, idiotas, anões, aleijados — um bocado de aberrações burlescas vestidas como príncipes, cuja função era rir de si mesmos e divertir uma casta que vivia fora da lei, prisioneira da etiqueta, dos complôs e das mentiras, atrelada ao confessional e ao remorso, com a Inquisição e o silêncio à porta.”
Ele então interrompe a leitura e diz:
> “Escute isso, garotinha: ‘Um espírito de nostalgia permeia seu trabalho, mas ele evita o que é feio, triste ou cruelmente mórbido acerca daquelas crianças oprimidas. Velázquez é o pintor da noite, dos espaços abertos e do silêncio, mesmo quando pintava em plena luz do dia ou num quarto fechado, mesmo com a sombra da batalha ou da caçada em seus ouvidos. Como raramente saíam de dia, com tudo afogado na tórrida luz da manhã, os pintores espanhóis comungavam com a noite.’”
A garotinha se aproxima, fascinada, e ele lhe pergunta:
> “É belo, não, garotinha?”
E a mãe dela, sua mulher, disse que você é louco por contar esse tipo de história para uma criança.
Essa é a coragem que permeia a obra de Godard: a ousadia de entrelaçar literatura e cinema, inserindo cenas inteiras com citações de livros que, à primeira vista, parecem nada acrescentar à história ou ao enredo. Mas é justamente aí que está sua genialidade. Gilles Deleuze dizia que Godard descobriu o pensamento. Ele se referia ao pensamento cinematográfico — a capacidade de o cinema não apenas narrar, mas refletir, questionar e dialogar com outras formas de arte, dissolvendo as fronteiras entre imagem, palavra e ideia.
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Essa cena vai ao encontro da análise que Foucault faz do quadro As Meninas, de Velázquez, no livro As Palavras e as Coisas. No quadro, observamos anões, os reis refletidos ao fundo, e em primeiro plano, as meninas acompanhadas de suas amas. Foucault interpreta essa composição como um marco da transição na representação do sujeito. Ele argumenta que, nessa obra, começa a se dissolver a visão do homem como parte de castas rígidas — onde sua identidade estava vinculada à condição de rei, rainha ou súdito —, dando lugar a uma nova perspectiva: a do indivíduo como ser singular, inserido em um jogo mais complexo de representações e olhares.
Foucault destaca que As Meninas não é apenas um retrato de membros da realeza, mas um questionamento sobre como a identidade é construída a partir das relações de poder e do olhar. O reflexo dos reis no espelho sugere que o centro do quadro não é a menina Margarita ou Velázquez pintando a cena, mas sim o olhar do espectador, que se vê envolvido na estrutura de representação da obra. Esse deslocamento do olhar, segundo Foucault, reflete a mudança de um mundo organizado por hierarquias fixas para um em que o sujeito passa a ser definido por sua posição no discurso e nas relações de saber.
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Outra cena icônica desse mesmo filme acontece quando a esposa de Ferdinand Griffon lhe pergunta onde está a empregada. Ele responde, casualmente, que a liberou para ir ao cinema. Indignada, ela retruca:
— De novo? Já é a quarta vez esta semana!
Ao que Ferdinand responde, sem hesitação:
— É claro que sim! Está passando Johnny Guitar!
Ele então acrescenta, com um ar de ironia:
— Vai ser bom para a educação dela. Chega de ignorantes no mundo!
A escolha de Johnny Guitar (1954), um faroeste dirigido por Nicholas Ray, não é aleatória. O filme subverte os códigos tradicionais do gênero ao colocar uma mulher, Vienna (interpretada por Joan Crawford), no centro da narrativa — uma proprietária de salão forte e independente, desafiando a autoridade masculina em um mundo dominado por pistoleiros. Para Godard, que sempre buscou reinventar a linguagem cinematográfica, essa referência não é apenas um comentário sarcástico de Ferdinand, mas um manifesto sutil sobre a importância do cinema como ferramenta de educação e emancipação.
A cena sintetiza o espírito livre e iconoclasta de O Demônio das Onze Horas (Pierrot le Fou, 1965), onde o cinema não é apenas citado, mas celebrado como parte essencial da vida e do pensamento.
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Nos anos 1960, o cinema de Jean-Luc Godard exerceu uma influência enorme sobre a juventude francesa, que estava prestes a protagonizar a revolução cultural do país. As pessoas queriam ser e falar como os personagens de seus filmes; sua estética moldou a aparência dos jovens e até a decoração de seus apartamentos. A grife Chanel, por exemplo, chegou a criar um icônico vestido em vermelho e azul como homenagem ao cineasta e à paleta de cores que ele frequentemente usava em seus filmes.
Anos depois, sua estética ainda atravessaria fronteiras, influenciando até mesmo este humilde escriba. Meu amor pelas artes – e até a ideia de tingir levemente as lentes dos óculos para um tom marrom ou escuro-claro, de modo que ainda se pudesse ver a íris dos olhos, conferindo um certo charme e um ar de intelectualidade ao olhar – veio diretamente da moda nos filmes de Godard.
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Apesar dessa admiração estética, não é um artista com quem eu gostaria de sair na vida real. Imagino que a conversa não seria exatamente agradável, talvez excessivamente politizada, hermética, como alguns de seus filmes. Sua formação é muito diferente da minha: veio de uma família rica e tradicional da França, estudou na Sorbonne e frequentou os melhores colégios. Ainda assim, isso não o impediu de desenvolver um olhar sensível para os menos favorecidos. Em determinado momento, chegou a abandonar o cinema artístico para fazer apenas filmes políticos, adotando uma linguagem cada vez mais engajada e experimental.
Uma passagem que ilustra bem sua tendência ao hermetismo está em um documentário sobre o sociólogo Pierre Bourdieu. Nele, Godard envia uma carta ao intelectual, acompanhada de alguns desenhos com um significado enigmático. Bourdieu, por mais brilhante que fosse, não consegue interpretá-los e, com ironia, limita-se a comentar: “Pobre Bourdieu.”
Muito diferente de François Truffaut, que teve uma trajetória mais autodidata e marginal. Nascido em uma família pobre, chegou a ser preso por roubar equipamentos para seu cineclube e foi praticamente adotado pelo lendário crítico de cinema André Bazin, que exerceu profunda influência sobre sua formação intelectual. Seus personagens Antoine Doinel (Os Incompreendidos) e o protagonista de O Homem que Amava as Mulheres são autobiográficos, reflexos de sua própria vivência. Esse, sim, valeria compartilhar uma cerveja.
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Outros cineastas contemporâneos com os quais tenho uma forte identificação, apesar das diferenças, e que podem ser comparados com Godard e Truffaut, mas no cinema independente e marginal, são Gaspar Noé e Harmony Korine.
Para traçar um paralelo, Noé seria o Godard dessa geração. Filho de pais argentinos e de família tradicional, teve uma educação privilegiada até se tornar cineasta. Ele ficou famoso ao ganhar o prêmio do júri no Festival de Cannes com seu curta-metragem Carne, que conta a história de um açougueiro de carne de cavalo — uma carne ilegal na França — e sua relação ambígua com a família, marcada por uma proteção excessiva e um clima que beira o incesto. Posteriormente, Noé fez o longa Sozinho Contra Todos, onde ele explora ainda mais a vida do personagem. A sua projeção internacional aconteceu com o polêmico Irreversível (2002), que chocou o mundo por suas cenas gráficas e de violência extrema, incluindo uma cena de 10 minutos de estupro e uma cabeça sendo esmagada por um extintor de incêndio. O filme trata de vingança e da irreversibilidade de nossas ações, mas com uma abordagem filosófica. Mais tarde, Noé continuaria chocando o público com o filme Love (2015), que apresenta cenas de sexo explícito. A estética brutal e visceral de Noé, associada ao seu olhar inquietante sobre a vida, o coloca como um cineasta que, como Godard, não tem medo de explorar os limites do cinema e da moralidade.
Por outro lado, Harmony Korine se aproxima de Truffaut. Cresceu na periferia de Nova York e, aos 16 anos, surpreendentemente escreveu o roteiro de Kids (1995), dirigido por Larry Clark. O filme se tornou um clássico cult ao retratar a juventude desiludida e sem destino, imersa em sexo, drogas e música. A geração marginal da periferia sem futuro é retratada através da história de um jovem que, embora tenha AIDS, passa de uma garota para outra, sem entender a gravidade de suas ações. O filme marcou uma era de preocupação com a doença e com o futuro da juventude. Korine, ao contrário de Noé, trabalha com um olhar que oscila entre a provocação e o retrato de uma juventude alienada e sem direção.
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A curiosidade é que os dois se encontram em um documentário que pode ser visto no YouTube, e é uma das coisas mais estranhas que já vi. O rolê que eles fazem lembra dois ex-dependentes tentando evitar recaídas, buscando alternativas para alcançar a euforia sem se entregar a comportamentos destrutivos. Eles visitam lugares inusitados, como um ferro-velho, um stand de tiro e até uma boate onde assistem a um transformista tocar rock. É algo até moderado para quem esperaria atitudes mais radicais de dois cineastas insanos, mas a conversa entre eles, sobre seus métodos criativos e filmes, revela muito sobre como ambos encaram a arte.
Eu, pessoalmente, gostaria de sair para um “rolê” com eles, por estar familiarizado com o tipo de universo em que transitam. O universo de Noé, por exemplo, retratando o submundo underground francês, está longe da Paris idealizada e romântica de filmes como O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. A Paris de Noé é suja, degradada, cercada por junkies, marginais, criminosos, travestis e outras parias sociais. Esse retrato é muito mais próximo de São Paulo, e da cena underground que conheci e frequentei por um tempo, com suas próprias versões de decadência e resistência.
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Em Irreversível, me coloco quase na posição de intelectual que age por instinto para proteger um amigo, buscando justiça e vingança. Acompanhando um amigo bonito que tem uma namorada deslumbrante, muito semelhante à Monica Bellucci, me vi em uma situação parecida, com um amigo e uma garota igualmente deslumbrante.
O universo de Korine é um pouco diferente, mas ainda assim se conecta ao meu. Ele representa a periferia de uma forma visceral, mas sem o mesmo envolvimento com as drogas no contexto da juventude. Eu não conheci as drogas na periferia, mas sim na fase adulta. A juventude retratada por Korine, porém, é algo que compreendo bem. Para comprar meu produto, frequentemente eu ia a favelas. Cheguei a passar a noite em uma delas, em um barraco, com uma mulher comprometida, em uma das minhas desventuras envolvendo entorpecentes e prazeres sexuais.
Uma história que exemplifica isso: uma vez, fui comprar um produto ilegal e encontrei um jovem traficante, menor de idade, que estava visivelmente cansado. Ele me disse: “Boy, tô com muito sono. Ontem participei de uma orgia. Você já fez uma?” Eu respondi que não era minha praia. Como o mundo do crime é cruel, e a prova de que não compensa, apesar dos aparentes benefícios, é que esse jovem rapaz foi morto antes de completar a maioridade.
Mas quantas vezes fui à “biqueira” e lá estavam várias garotas, me chamando e oferecendo companhia?
E eu tão absorto no meu prazer onanista, solipsista do uso solitário das drogas, preferia usar sozinho no meu quarto pra não ter que dividir com ninguém.
Quantas vezes ouvi dizer que o prazer da droga era maior do que o do sexo? De fato, nunca usei drogas injetáveis, mas falam que o prazer proporcionado por heroína e cocaína injetadas é maior do que o orgasmo.
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Ambos, Noé e Korine, expressam em sua arte os instintos mais primitivos. Noé, por exemplo, em Love, cria uma espécie de trip sexual no qual dá vazão aos seus desejos mais latentes. Na cena de ménage à trois, com uma loira e uma morena, ele mistura erotismo com música funkadelic do Maggot Brain, como em um videoclipe. O resultado, ao meu ver, é fraco, mas a tentativa de unir a estética ao prazer corporal é uma das poucas coisas que tornam o filme memorável.
Outro exemplo é a cena de Love onde o pai, também cineasta, refletindo sobre sua vida de pai negligente, observa o filho pequeno enquanto toca “Gynpea” de Erik Satie, mas na versão eletrônica de Giorgio Moroder. A cena, mais uma vez, une música e reflexão sobre a falha paterna, mas sem se aprofundar no drama, ficando apenas na superficialidade.
Finalmente, outro filme ruim de Korine que resultou em uma espécie de “ego-trip” sexual foi Spring Breakers (2012), estrelado por Vanessa Hudgens, James Franco e Selena Gomez. O filme segue jovens colegiais entediadas que fogem da escola para se entregar aos prazeres hedonistas das festas de primavera. É uma obra vazia, sem profundidade, que tenta, sem sucesso, discutir o vazio existencial de uma juventude perdida. Um bom filme artístico que segue uma temática parecia é How to Have a Sex, que resenhei aqui:https://www.recantodasletras.com.br/resenhasdefilmes/7979225
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E falando em filmes sobre sexo, lembro de Ninfomaníaca (2013) de Lars von Trier, que também se alinha a essa ideia de exploração do desejo e da sexualidade. Embora ele seja extremamente erudito, com referências complexas e até filosóficas — como a cena de 20 minutos que faz uma menção a uma peça de Wagner na abertura de Melancolia (2011) —, sua abordagem não deixa de ser extremamente hermética e, por vezes, maçante. Como cineasta, ele provoca, mas é exatamente esse excesso que me faz acreditar que seria um papo chato na vida real.
Alguém cuja trajetória de formação se assemelha à minha é Woody Allen. Nascido em Brooklyn, em uma família humilde, a formação intelectual dele passou longe dos meios acadêmicos e foi marcada mais pelo autodidatismo. Allen começou a trabalhar no show business, primeiramente como comediante de stand-up, explorando seu lado cômico. Seus primeiros filmes seguiam um humor mais físico, à la Buster Keaton e Charlie Chaplin. Com o tempo, ele se sofisticou e encontrou uma fórmula peculiar, que é muito dele: a comédia romântica erudita e intelectualizada. No entanto, seu gosto musical, embora erudito, é mais refinado do que o meu, e o contato com o ambiente nova-iorquino fez com que ele se tornasse um pouco “engomadinho”. Na verdade, eu não me imagino tendo uma conversa descontraída com ele, já que o clima intelectual e pretensioso que por vezes ele exala me faria sentir distante.
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No Brasil, eu gostaria de ter vivido na época de Armando Nogueira, Nelson Rodrigues e Vinícius de Moraes, e ter compartilhado um whisky com esses mestres. Imagino uma noite ouvindo a Bossa Nova e as sambas-canções que Ruy Castro narra com tanto brilho em Noites de Meu Bem. Essa é uma época que me atrai, pela intensidade e pela sofisticação cultural, e seria um privilégio fazer parte desse cenário.
Por outro lado, no Brasil, me identifico com Paulo Leminski, cuja biografia O Bandido que Sabia Latim descreve bem sua trajetória. Leminski se autodenominava um “artista marginal”, e sua formação intelectual também passou longe da academia. Ele mesmo diz que houve uma época em que declamava parnasiano, quase “chique”, e numa festa, conta-se que ele surpreendeu a todos ao falar mais de cinco idiomas diferentes, incluindo japonês e latim. Sua experiência intensa com as drogas o marcou, e ele usava mangas longas, mesmo no calor, para esconder as marcas das agulhas nos braços. Seus dentes, ou a falta deles, refletiam uma negligência com a aparência que é um pouco diferente da que tenho comigo mesmo. Mas Leminski era alguém vivido, e é uma delícia ouvi-lo falar. Suas palestras e ideias estão disponíveis no YouTube e, sinceramente, eu adoraria participar de uma conversa informal em torno de uma mesa de bar com ele. Sua visão de que a pichação e o grafite são formas artísticas e expressões legítimas de protesto está muito bem colocada em uma exposição, também acessível online para quem se interessa.
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E você, há algum artista com quem gostaria de conversar e trocar uma ideia, tomar uma cerveja, ou talvez até filosofar sobre arte e vida?