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DAVE LE DAVE
SIM, ELE MESMO
Textos

O Prazer que Só a Língua Pode Dar

Friedrich Nietzsche já alertava, em Crepúsculo dos Ídolos (1889), que a humanidade levaria séculos para superar os valores cristãos e o platonismo. Isso porque ainda acreditamos na gramática, e a linguagem, segundo ele, é uma grande armadilha metafísica.

 

Para entender essa crítica, basta lembrar como Platão dividia a realidade: de um lado, o mundo sensível, feito de coisas passageiras, sujeitas ao tempo e à mudança; de outro, o mundo das ideias, onde tudo é eterno e perfeito. O cristianismo herdou essa visão e a aplicou ao ser humano, separando corpo e alma. O corpo é impermanente, transitório, cheio de desejos. A alma, em contrapartida, seria a essência imutável de cada um, aquilo que nos define para além do tempo.

 

Mas o que isso tem a ver com a linguagem? Absolutamente tudo. A estrutura da língua que usamos todos os dias respalda essa maneira de pensar. A própria Bíblia reforça isso ao afirmar: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.” Deus é verbo, ação. A linguagem organiza o mundo, e desde a infância aprendemos a ver a realidade por meio dela.

 

O problema? Essa estrutura nos faz acreditar que certas coisas são absolutas. Como se, por trás de cada nome, houvesse uma essência eterna.

 

Ser ou Ente? A Chave da Questão

Martin Heidegger, em Ser e Tempo (1927), aprofunda essa discussão ao diferenciar ontologia e onticidade. Vamos simplificar:

 

Ontologia trata da essência do ser, aquilo que o define de maneira imutável.

Onticidade se refere ao ser no mundo, às suas mudanças, ações e características concretas.

 

Essa distinção já existia desde Platão, com sua famosa separação entre o mundo das ideias (imutável) e o mundo sensível (mutável).

 

Para entender melhor, pense no seguinte exemplo:

 

Todas as cadeiras do mundo são diferentes. Há cadeiras altas, baixas, confortáveis, desconfortáveis, de madeira, de plástico. Mas, ainda assim, reconhecemos todas como cadeiras. Isso porque, segundo Platão, temos na mente a “ideia perfeita” de cadeira, e essa ideia não muda.

 

Agora, apliquemos essa lógica aos seres humanos:

 

Seu corpo muda, sua aparência se transforma, seus desejos variam. Tudo isso pertence à onticidade, relativo aos entes, porque está no campo das mudanças. Mas sua identidade essencial? Sua “alma”? Ah, essa estaria no domínio da ontologia—imutável, eterna, ligado ao Ser.

 

Essa visão filosófica, por mais abstrata que pareça, está embutida na própria gramática. E agora chegamos ao que realmente interessa: como a língua expressa esse jogo entre ser e ente, entre desejo e essência?

 

Entre Predicados e Prazeres

A estrutura da linguagem reflete essa metafísica sem que sequer percebamos. Veja este exemplo:

 

A professora do Recanto é inteligente, sexy e sensual.

 

Agora, olhemos de perto:

 

Sujeito: A professora do Recanto

Verbo de ligação: é

Predicado nominal: inteligente, sexy e sensual

 

Aqui, estamos lidando com características do ser. O verbo ser não indica ação, mas um estado. Ele liga o sujeito à sua essência, como se dizer que alguém é sexy fosse tão imutável quanto dizer que o fogo queima. Estamos no campo da ontologia.

 

Agora, veja esta outra frase:

 

A professora beijou o escritor do RL.”

 

A coisa muda completamente. O verbo beijar indica ação, movimento. O sujeito não está mais definido por uma característica essencial, mas por um ato. O beijo acontece no tempo e pode nunca mais se repetir. Estamos agora no campo da onticidade—onde a existência é fluxo e transformação.

 

A diferença é sutil, mas profunda:

 

Verbos de ligação (ser, estar, permanecer, ficar…) nos fazem acreditar em essências.

 

Verbos de ação nos lembram de que tudo é transitório, passageiro.

 

Verbos Transitivos e o Toque do Desejo

E se quisermos aprofundar a brincadeira, basta pensar nos verbos transitivos. Eles expressam ações que “transitam” para outro ente, criando um elo, um deslocamento, um desejo realizado.

 

Veja:

A professora seduziu o escritor.”

 

O verbo seduzir não é um verbo qualquer. Ele precisa de um complemento. A sedução não pode ficar solta no ar; ela precisa de um alvo. O desejo só se realiza na presença do outro.

 

Agora, um detalhe importante:

 

• Se o verbo precisa de um complemento direto (sem preposição), ele é transitivo direto (“A professora beijou o escritor.”).

 

• Se o verbo exige uma preposição (a, para, de…), ele é transitivo indireto (“A professora sorriu para o escritor.”).

 

E há também os verbos intransitivos, aqueles que bastam por si mesmos, como em:

 

O desejo morreu.”

 

Aqui, o verbo morrer não precisa de complemento. Quando algo morre, acabou. Mas se quisermos enriquecer a cena, podemos adicionar um adjunto adverbial, que dá mais informações:

 

O desejo morreu no escuro da madrugada.”

 

Ou então:

 

O amor morreu entre lençóis.”

 

Tudo depende de até onde queremos levar a frase…

 

A Metafísica do Desejo: Entre Ser e Fazer

Se voltarmos à grande questão filosófica, perceberemos que os verbos dizem muito sobre como compreendemos o mundo.

 

Quando usamos um predicado nominal, estamos lidando com algo essencial, algo que distingue aquele ser de todos os outros. Como se disséssemos:

 

A escritora do RL que parece uma princesa da disney é irresistível.”

 

Agora, se transformamos essa frase para um predicado verbal, o jogo muda:

 

A escritora, cujo apelido remete a folha, provocou arrepios.”

 

Agora há um movimento. Algo acontece. O ser se torna ação.

 

Essa é a grande chave da metafísica da linguagem: os verbos de ligação nos fazem acreditar em essências imutáveis, enquanto os verbos de ação nos lembram que tudo é transitório, como o desejo, que só existe quando se manifesta.

 

Conclusão: A Linguagem como Jogo Sensual

A filosofia da linguagem revela que o modo como falamos molda nossa visão de mundo. Desde Platão, acreditamos que há essências eternas, e nossa gramática reforça isso. Mas a verdade é que o prazer está no jogo entre ser e fazer, essência e movimento.

 

O verbo de ligação é o sussurro antes do toque. O verbo transitivo é o toque em si.

 

E a grande arte da linguagem—assim como a da sedução—é saber quando usar cada um.

 

 

DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo)
Enviado por DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo) em 02/02/2025
Alterado em 02/02/2025
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