Nos livros Como as Democracias Morrem (de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt) e Os Engenheiros do Caos (de Giuliano da Empoli), são analisadas as formas como as narrativas são manipuladas para subverter valores democráticos e transformar sociedades por meio de inversões semânticas e emocionais. Essa prática não se limita ao macro, aos governos; pessoas individuais, no micro, também a utilizam para exercer relações de poder, principalmente nos relacionamentos, mais especificamente ainda, nos amorosos. Vou estabelecer um paralelo entre as análises desses autores, o livro 1984 de George Orwell e o filme Alphaville de Jean-Luc Godard.
Em Como as Democracias Morrem, Levitsky e Ziblatt destacam como partidos e líderes autoritários corroem gradualmente as instituições democráticas ao deturpar seus fundamentos. Medidas que enfraquecem a democracia são apresentadas como necessárias para “protegê-la”. Por exemplo, restringem liberdades individuais sob o pretexto de garantir “segurança” ou desmontam o sistema de pesos e contrapesos para combater a “corrupção”. É a arte de justificar o autoritarismo com o discurso da democracia.
Aqui no Brasil, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, vimos como ele dizia lutar pela liberdade, mas, na prática, esteve envolvido em uma tentativa golpista para impor uma ditadura. Houve ataques incessantes às instituições democráticas e até planos de assassinato ao atual presidente. Essa inversão de valores revela como a liberdade foi utilizada como justificativa para ações profundamente antidemocráticas.
Já em Os Engenheiros do Caos, Giuliano da Empoli mostra como líderes populistas manipulam emoções por meio de ferramentas digitais. Eles constroem narrativas baseadas no medo, na raiva e na identidade, apropriando-se de valores democráticos para justificar medidas autoritárias. A liberdade é usada como bandeira, mas sua aplicação é restrita àqueles que pertencem ao “grupo certo”. O que aparenta ser um movimento libertador na verdade conduz a um estado de polarização e controle.
No Brasil, a tecnologia foi usada para disseminar fake news e manipular emoções, gerando desinformação e medo. O chamado “gabinete do ódio” foi uma ferramenta-chave para promover o caos democrático. Curiosamente, seguindo a lógica de inversão, ele foi batizado com um nome que deveria remeter a algo oposto, como “gabinete do amor”. É nesse ponto que traçamos um paralelo com o livro 1984.
No livro 1984, George Orwell apresenta o conceito de “duplipensar”, que consiste em slogans contraditórios como “Guerra é Paz”, “Liberdade é Escravidão” e “Ignorância é Força”. A manipulação da linguagem e dos significados (via Novilíngua) apaga contradições e consolida o poder do Partido. A inversão de valores não é apenas retórica; ela cria um ambiente em que as pessoas não conseguem resistir ao autoritarismo porque já não têm as ferramentas linguísticas e emocionais para isso.
O filme Alphaville, de Jean-Luc Godard, é profundamente influenciado por 1984. Nele, palavras e conceitos desaparecem, eliminados pelo governo totalitário de Alpha 60. Entre as palavras banidas estão:
• “Amor”: O amor é considerado irracional e incompatível com a lógica de Alphaville. Sem a palavra, os cidadãos não conseguem nomear ou conceber plenamente o sentimento, o que facilita o controle emocional.
• “Consciência”: O conceito de autorreflexão é eliminado. Uma população que não reflete sobre sua condição não oferece resistência.
• “Por quê?”: Questionar é proibido, pois simboliza o ato de duvidar da ordem estabelecida.
Assim como em 1984, onde a Novilíngua elimina palavras para restringir o pensamento crítico, Alphaville utiliza a manipulação da linguagem para criar cidadãos obedientes. Ambas as obras mostram como a linguagem é mais do que um meio de comunicação; ela é uma ferramenta de pensamento. Ao controlá-la, controla-se também o pensamento.
Essa manipulação não ocorre apenas em governos, mas também no cotidiano das relações humanas. Pessoas, individualmente, usam inversões de valores para exercer poder. Por exemplo, dizem que quem se preocupa com os outros não tem empatia, ou que textos educados, eruditos e elegantes são tóxicos e nocivos. Essas tentativas de subverter significados são estratégias de controle e dominação, muito semelhantes às descritas por Orwell.
Sinceramente, eu me comovo com as histórias de algumas pessoas, mas acredito que, em um relacionamento entre duas pessoas, ainda mais quando se fala de amor, não há espaço para jogos de poder ou falta de reconhecimento mútuo. Amor exige entrega, ajuda mútua e reciprocidade. No entanto, ao restringir e apagar meus comentários, a pessoa exerceu sua liberdade. Como disse Sartre, nossas ações não refletem apenas o que queremos para nós mesmos, mas o tipo de sociedade em que desejamos viver. E essa atitude de silenciar mostrou o tipo de sociedade que essa pessoa almeja: uma sem diálogo, sem troca de experiências, sem valorização do conhecimento, intolerante e marcada pela falta de gratidão.
Curiosamente, isso se torna um eterno retorno do mesmo. As mesmas pessoas criam perfis anônimos, colocaram fotos em determinados momentos que revelavam um pouco de suas identidades e aparências reais, mas nunca completamente, bloqueiam ou apagam meus comentários, acusando-me de ser “tóxico” ou “nocivo”. Tudo exatamente igual.
É a Novilíngua de Orwell em ação, tentando distorcer valores. Basta observar meus textos — sempre diretos, educados e respeitosos — para perceber como essas acusações não têm fundamento. E tudo apoiado em conteúdo, leitura e embasamento. Essas pessoas estão fugindo de mim ou de si mesmas?
Como diz Zaratustra: “Eu sou um tronco em uma correnteza. Vocês podem se segurar em mim, se quiserem, mas eu não sou suas muletas.” Afinal, não fujo de quem sou, e minha busca por diálogo, conhecimento e reciprocidade continua sendo o que me define.