Este texto é inspirado e uma homenagem a uma grande leitora e apreciadora da obra de Nelson Rodrigues: a socióloga e musa Edivânia Patrícia. Ser leitora de Nelson, para uma mulher, é uma qualidade ainda mais admirável. Ela, a quem eu apelidei carinhosamente de “professora”, tinha uma página no Recanto das Letras onde compartilhava textos de sociologia e poesias líricas e reflexivas, que personificavam a própria autora: inteligente e bonita ao mesmo tempo. Porém, subitamente, Edivânia apagou sua conta. Retomei o contato com ela pelo Instagram, e ela prometeu voltar ao Recanto, garantindo que jamais perderíamos contato. Conversamos bastante ao longo de um dia, mas, inesperadamente ainda, ela apagou também a conta no Instagram. Agora, aguardamos que cumpra sua promessa de retornar ao Recanto e que, de alguma forma, possamos manter contato, seja por aqui ou por outro meio.
Cumpro, entretanto, minha promessa de homenageá-la com este texto sobre a vida e obra de Nelson Rodrigues e espero que ela leia. Observei, contanto, que ela criou outra página sob um pseudônimo e chegou a comentar em um dos meus textos, comunicando seu retorno. No entanto, mencionou que ainda não estava certa se voltaria a publicar. Por algum motivo, acabou apagando tanto o comentário quanto o novo perfil. As mulheres são “inconstantes e borboletas”, como dizia Clarice Lispector. De todo modo, este texto é para você, professora! Eu o fiz enquanto estava andando na esteira, tamanha a urgência em agradá-la para conciliar com minha rotina corrida.
A vida de Nelson Rodrigues foi permeada de tragédias, como se ele fosse um dos personagens de sua famosa coluna de jornal que popularizou sua obra para as massas: “A Vida Como Ela É”. Autor polêmico, grande frasista, Nelson tocava na ferida de uma sociedade conservadora ao abordar em sua obra temas como o adultério, a síndromes de inferioridade do brasileiro diante da cultura estrangeira, ao qual ele descreveu como complexo de vira-lata, os desejos ocultos e reprimidos, a preguiça nacional, e o poder do dinheiro no processo de enamoramento, entre outros. Por expor temas tão delicados, foi frequentemente rotulado como machista. Além disso, sua postura não combativa durante a ditadura militar contribuiu para que fosse visto como conservador, um rótulo que, em certa medida, possuía alguma verdade. No entanto, Nelson desagradou tanto conservadores quanto progressistas, feministas quanto machistas, com sua obra provocadora e revolucionária. Ele não se importava com as críticas; afinal, foi ele quem afirmou: “Toda unanimidade é burra”.
Aqui estão algumas de suas frases icônicas.
“Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava.”
Uma observação ácida sobre os segredos e hipocrisias da vida privada.
“Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro.”
Um olhar irônico sobre as relações humanas e o poder do dinheiro.
O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da inexperiência.”
Um comentário mordaz sobre juventude e maturidade.
“Sem sorte, não dá nem para chupar um picolé.”
Um exemplo de seu humor ao ressaltar a importância da sorte, porque até o picolé pode cair no chão.
“Invejo a burrice, porque é eterna.”
Mostra sua ironia cortante quanto a inteligência média humanidade e visão desencantada do mundo.
“Não se apresse em perdoar. A misericórdia também corrompe.”
Uma provocação filosófica sobre o perdão e a moralidade.
“O brasileiro é um feriado.”
Reflete seu humor crítico sobre o comportamento nacional, indolente e preguiçoso.
“O subdesenvolvimento não se improvisa; é uma obra de séculos.”
Uma crítica irônica aos problemas estruturais do Brasil.
“A vida é cheia de som e fúria, mas é uma história contada por um idiota.”
Parafraseando Shakespeare, Nelson acrescenta seu tom de desilusão e fazendo alusão a obra aclamada de William Faukner.“
“Brasileiro só é solidário no câncer.”
Desmitificando o mito de que o brasileiro seria uma pessoa caridosa, disposta a ajudar o próximo, essa frase transborda sarcasmo e ironia.
“O pior tipo de solidão é a companhia de um paulista.”
A frase explora o espírito introspectivo associado à figura do paulista, em contraste com o expansivo carioca. Ela demonstra que o paulista, muitas vezes, não saberia se divertir, refletindo a própria imagem de sua cidade, mais voltada para os negócios, enquanto o Rio de Janeiro se apresenta como um lugar mais lúdico.
A biografia de Nelson Rodrigues, “O Anjo Pornográfico”, escrita por Ruy Castro, é uma das melhores que já li. O título resume bem o caráter dúbio do autor, que oscilava entre o sublime e o profano em sua obra, misturando elementos apolíneos (sonho e beleza) com os dionisíacos (embriaguez e paixão).
Embora sua obra tenha um tom erótico e Nelson fosse um defensor da safadeza nos momentos românticos, Castro relata o modo carinhoso com que ele tratava sua esposa, com quem foi casado até o fim da vida. Ele deixava bilhetes amorosos espalhados pela casa para demonstrar o quanto ela era importante para ele, tanto como companheira quanto como inspiração para sua obra.
Nelson começou sua carreira cedo. Filho de imigrantes nordestinos que se mudaram para o Rio de Janeiro, seu pai fundou o jornal Amanhã. Aos 13 anos, Nelson assumiu a tarefa de redator policial. Seus textos, já com um toque literário e criativo, aumentavam os casos e prendiam o leitor. Não demorou para que ele começasse a assinar outros trabalhos no jornal.
Após a morte de seu pai, o irmão de Nelson, Roberto Rodrigues, assumiu as responsabilidades do jornal. Porém, durante a cobertura de um caso envolvendo uma cantora famosa e um médico casado, Roberto foi confrontado pela artista na redação e acabou assassinado. Com isso, outro irmão, Mário Filho (que mais tarde daria nome ao estádio Maracanã), assumiu as funções de chefe de família e do jornal.
A tragédia continuou a rondar Nelson. Em 1954, seu irmão Eduardo morreu durante um terremoto em São Paulo, soterrado pelos escombros. Mais tarde, Nelson perderia sua filha Maria, que nasceu com síndrome de Down e problemas respiratórios graves, necessitando de cuidados médicos constantes. A morte dela foi um golpe devastador.
Essas experiências trágicas marcaram profundamente a vida de Nelson Rodrigues, criando uma visão fatalista e sombria que ele expressaria em suas peças e crônicas. Ele acreditava que a tragédia era inerente à condição humana, como se estivesse ecoando Nietzsche, que dizia que a criação só é possível através da dor.
Nelson estreou no teatro com “A Mulher Sem Pecado” (1941), uma peça que já introduzia temas como o ciúme obsessivo e as relações destrutivas. No entanto, foi com “Vestido de Noiva” (1943) que revolucionou o teatro brasileiro. A peça mistura três planos narrativos: realidade, alucinação e memória, trazendo uma estrutura inovadora que seria comparada ao efeito Rashomon, conhecido por apresentar diferentes pontos de vista. Nelson foi o precursor, o pioneiro do roteiro não linear e fragmentado, trazendo diferentes perspectivas de personagens muito antes de Kurosawa, Robert Altman, Paul Thomas Anderson e Tarantino.
Para sua montagem, Nelson contou com a direção do dramaturgo ucraniano Zbigniew Ziembinski, um nome de destaque no teatro brasileiro e mundial, que já havia adaptado, internacionalmente, peças de autores como Shakespeare e Tchekhov.
Outra curiosidade é que, por falta de um ator principal, Nelson chegou a interpretar o protagonista de uma de suas peças, “Perdoa-me por Me Traíres”, no papel de um marido alcoólatra.
Por fim, Nelson foi também um amante do futebol e cronista esportivo. Apesar de sua visão limitada, assistia aos jogos com Armando Nogueira, perguntando: “E aí, Armando, o que achamos do jogo hoje?”
Nelson Rodrigues faleceu em 1980, mas sua obra continua relevante e provocadora, mostrando a genialidade de um autor que viveu a tragédia e a transformou em arte. Como ele dizia: “Toda mulher gosta de apanhar. Só as neuróticas não.” Ao que eu, autor deste texto, completaria, incorporando o espírito rodriguiano, que eu jamais bateria em uma mulher: com roupa!