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DAVE LE DAVE
SIM, ELE MESMO
Textos

Os Sodomitas e um Tabu Sexual

Gaspar Noé, um dos cineastas mais polêmicos da história do cinema, dirigiu em 1998 o curta-metragem “Sodomites”, encomendado pelo governo francês como parte de uma campanha para promover a conscientização sobre a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). O curta exemplifica a estética transgressora de Noé, explorando temas de sexualidade com intensidade visual e simbólica.

 

O filme, com aproximadamente sete minutos de duração, é ambientado em um cenário estilizado e opressivo, marcado por iluminação em tons de neon.

As cenas de interação sexual apresentam homens mascarados, com máscaras que evocam cabeças de bois ou bodes, remetendo ao fetichismo, anonimato e desumanização. As máscaras também remetem a uma mistura de designs industriais e fetichistas, lembrando formas de couro, látex e elementos metálicos, que ocultam completamente as expressões faciais dos participantes. Esse visual intensifica a atmosfera de desconexão emocional, transformando os personagens em figuras simbólicas, quase arquetípicas, que representam os impulsos humanos mais primais e os perigos associados à falta de proteção. Apesar do conteúdo explícito, o foco é mais alegórico do que erótico, reforçando a mensagem de responsabilidade e autocuidado.

 

A narrativa aborda questões como intimidade, risco e as consequências das escolhas individuais, ressaltando a necessidade de responsabilidade e autocuidado. A ambientação, que lembra clubes underground, cria um clima de sensualidade e perigo, alinhado à mensagem educativa de incentivo ao uso de preservativos.

 

Gaspar Noé utiliza elementos estilísticos deliberadamente perturbadores: câmeras que captam detalhes do corpo em planos fechados, texturas da pele e fluídos, enfatizando tanto a vulnerabilidade quanto a urgência do tema. “Sodomites” foi produzido em um momento de auge da epidemia de AIDS, quando campanhas de saúde pública precisavam romper barreiras culturais e enfrentar tabus.

 

Não foi a única vez que Noé chocou o público ao abordar temas sensíveis. Em 2002, ele lançou “Irreversível”, um filme que gerou controvérsia mundial por sua famosa cena de estupro anal, com mais de dez minutos ininterruptos de duração, envolvendo a atriz Monica Bellucci, que interpreta Alex. O ato, filmado de maneira crua e sem cortes, ocorre em um túnel escuro e claustrofóbico, ressaltando a violência e o impacto emocional da cena.

 

O fato de o estupro ser anal tem uma peculiaridade: permite que espectadores de ambos os sexos se identifiquem com a cena de maneiras intensas e desconfortáveis, gerando uma junção de sentimentos como indignação, empatia, revolta, ojeriza e repulsa – emoções que apenas Noé consegue evocar de forma tão crua e visceral. Ele explora não só a violência física, mas também as complexas reações emocionais do público, criando uma experiência de desconforto absoluto.

 

Noé também escolheu, intencionalmente, que o agressor, Le Tenia (interpretado por Jo Prestia), fosse encontrado em uma boate gay chamada Rectum (Em clara alusão a parte final do aparelho digestivo), intensificando o choque visual e simbólico ao retratar o ambiente de práticas sexualizadas e violentas e a predileção da personagem em sodomizar. A sequência mais apoteótica ocorre quando Le Tenia tenta sodomizar Marcus (Vincent Cassel), o namorado de Alex, virando-o de costas. Porém, antes de consumar o ato, Pierre (Albert Dupontel) seu amigo, ex-namorado de Alex e filósofo, intervêm. A cena culmina com Pierre usando um extintor de incêndio para brutalmente esmagar o crânio de Le Tenia, em uma das cenas de vingança mais gráficas já filmadas.

 

O Sexo Anal e Seus Tabus

Além das representações cinematográficas, o sexo anal carrega simbolismos e tabus culturais que vão além da tela. É uma prática frequentemente associada à transmissão de doenças sexualmente transmissíveis, como a AIDS, devido à maior fragilidade da mucosa anal, que é propensa a microfissuras durante a penetração. É também amplamente praticada em relações entre homens gays, mas está presente no imaginário de homens heterossexuais, muitas vezes associado a ideias de submissão, transgressão ou prazer “proibido”, a ideia de um local mais apertado talvez.

 

Anatomicamente, o ânus não é um órgão sexual projetado para a penetração: não possui lubrificação natural, não se expande naturalmente como a vagina e é mais suscetível a infecções. Apesar disso, muitas pessoas relatam prazer nessa prática, quando realizada de forma consensual e com os cuidados. É necessário que a prática seja realizada com lubrificação adequada e preliminares que estimulem o desejo e explorem a capacidade erógena da região, sempre de forma gradual.

 

Eu aprecio como consigo abordar temas considerados absurdos com naturalidade, garbo e elegância, mas o que me levou a falar sobre isso? É importante porque o sexo anal é uma prática associada à transmissão de doenças como a AIDS entre homens gays, que não têm outra opção anatômica para relações penetrativas. Além disso, pode ser um símbolo de dominação masculina sobre a mulher quando realizado sem consentimento ou prazer mútuo.

 

Curiosamente, esse tema surgiu enquanto eu ouvia um programa antes de dormir. Estava acompanhando notícias sobre futebol e o Palmeiras, mas, de repente, a playlist mudou e começou um programa sobre educação sexual, que abordava o assunto. Isso me motivou a trazer esse tabu à tona. Afinal, ontem escrevi sobre pedofilia e a linguagem do sexo, e esse texto encerra a trilogia — embora sejam temas completamente distintos.

 

Ainda assim, em relações heterossexuais, o sexo anal pode ser interpretado como um símbolo de dominação masculina, especialmente quando exigido de maneira unilateral. Muitas mulheres, por questões afetivas ou pressões sociais, podem sentir-se obrigadas a ceder, mesmo que não tenham interesse ou prazer na prática, como uma espécie de “prêmio” ao seu parceiro, contrariando o princípio básico do sexo: o prazer mútuo e consensual. 

Parafraseando a frase de Clarice Lispector em “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres” (1969) — título sugestivo e apropriado ao tema —, em que ela afirma que “amor não é prêmio”, podemos dizer que “C* não é prêmio”.

 

Como bem disse a cantora Sandy em uma declaração que surpreendeu pela franqueza: “É possível ter prazer anal.” No entanto, isso não invalida o fato de que, para muitas pessoas, a prática pode ser desconfortável ou até dolorosa, caso não seja realizada de forma respeitosa e cuidadosa.

 

Reflexões Finais

Falar sobre o tabu do sexo anal é importante porque a prática carrega um simbolismo duplo: pode ser um veículo de prazer, mas também de dominação ou submissão, dependendo do contexto. Além disso, é fundamental abordar sua ligação com a prevenção de doenças e o respeito aos limites individuais.

 

Por que trago esse tema à tona? Porque, assim como a pedofilia e outras questões que abordam a linguagem do sexo, ele toca nas margens daquilo que muitos preferem evitar, mas que precisam ser discutidos com naturalidade. O sexo é um território onde poder, desejo e ética se entrelaçam, e cabe a cada um de nós traçar os limites com base no prazer mútuo e na reciprocidade.

 

Como repito sempre: o limite do prazer é o limite do prazer do outro.

DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo)
Enviado por DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo) em 20/01/2025
Alterado em 20/01/2025
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