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DAVE LE DAVE
SIM, ELE MESMO
Textos

MORRE DAVID LYCHY, GÊNIO DO CINEMA

É com extrema consternação que recebo a morte de um dos meus cineastas prediletos de todos os tempos, David Lynch.

 

Lynch foi responsável por produzir algumas das cenas mais surreais, oníricas e absurdas que já vi na história do cinema. Seu universo cinematográfico era habitado por criaturas bizarras, completamente fora de qualquer estereótipo, e sua estética misturava sonho, pesadelo e realidade. Ele foi um mestre na criação de atmosferas desconcertantes, onde o ordinário e o extraordinário coexistem de forma perturbadora e fascinante.

 

Seu filme de estreia foi o aclamado Eraserhead (1977), uma obra-prima de um surrealismo denso e inquietante. O filme segue Henry Spencer, um homem que vive em um mundo industrial sombrio e disfuncional, e sua esposa, Mary X, que dá à luz uma criança deformada. A trama é uma experiência sensorial e existencial, onde Lynch explora temas de paternidade, angústia e alienação, com uma estética única de luz e sombra, acompanhada de uma trilha sonora inquietante. O filme gerou uma enorme influência na cultura cinematográfica, especialmente na música, como quando a banda de rock alternativo The Pixies fez uma homenagem à obra ao transformar a música Lady in the Radiator (uma canção emblemática do filme) na faixa In Heaven (“In heaven, everything is fine. You’ve got your good things and I’ve got mine”). Uma das cenas mais perturbadoras do filme é quando a garota, Lady in the Radiator, canta essa música, transmitindo uma estranha calma em meio ao caos, criando uma dicotomia de sentimentos que só Lynch sabia inspirar.

 

O sucesso, no entanto, veio com a série Twin Peaks (1990-1991), uma mistura de drama policial e mistério psicológico que logo se tornaria um clássico cult. A série, que se passa em uma pequena cidade do estado de Washington, gira em torno do assassinato da popular estudante Laura Palmer e da investigação liderada pelo excêntrico agente especial do FBI Dale Cooper (interpretado por Kyle MacLachlan). Lynch misturou surrealismo, horror psicológico e elementos do cotidiano, criando um enredo intrigante e cheio de camadas, com personagens excêntricos e situações aparentemente absurdas. O show introduziu uma abordagem única ao gênero policial, desafiando as convenções e mantendo o público em constante tensão. O longa-metragem Os Últimos Dias de Laura Palmer (1992), inspirado na série, traz uma extensão desse universo, com a busca por respostas em meio à perplexidade de uma cidade marcada por mistérios e segredos profundos. Escrevi sobre o filme nessa resenha aqui: (Twin Peaks - Os Últimos Dias de Laura Palmer)

 https://www.recantodasletras.com.br/resenhasdefilmes/7978826

 

Talvez o seu filme mais visceral seja Blue Velvet (1986), onde um jovem chamado Jeffrey Beaumont (interpretado por Kyle MacLachlan) investiga um crime após encontrar uma orelha cortada no quintal de sua casa. A busca o leva a um mundo de corrupção, violência e perversão, com a atuação de Dennis Hopper como Frank Booth, um vilão psicótico e depravado, que é uma das performances mais insanas da história do cinema. Hopper traz uma carga emocional brutal para o papel, mesmo estando visivelmente alterado devido à mistura de substâncias, o que só aumenta a atmosfera surreal e angustiante do filme.

Um dos momentos mais icônicos do filme acontece quando Dorothy Vallens, a personagem de Isabella Rossellini, canta a música Blue Velvet em um clube noturno. Sua performance confere à trama um clima de aparente tranquilidade em meio ao caos, mesclando dramaticidade e calma, capturada na própria expressão da personagem enquanto interpreta essa clássica canção, originalmente composta por Bernie Wayne e Lee Morris em 1950. A música, que já carrega em sua melodia e letra uma atmosfera melancólica, torna-se um símbolo de tragédia iminente, ecoando a dualidade emocional que permeia toda a narrativa.

 

Décadas depois, essa mesma música foi reinterpretada pela cantora Lily Allen, que a adaptou em um contexto moderno, introduzindo-a a uma nova geração e conferindo uma nova camada de sensibilidade à obra original.

 

No entanto, a cena mais apoteótica do filme acontece quando Frank Booth, o perturbador personagem de Dennis Hopper, espera no apartamento de Dorothy com uma faca de açougueiro, pronto para assassiná-la. Em uma tentativa desesperada de se salvar, Dorothy se esconde completamente nua dentro de um armário. A sequência é ao mesmo tempo sensual e tensa, destacando a brutalidade e o erotismo que coexistem na obra de David Lynch. Essa mistura de sensações antagônicas é uma marca do diretor, que transforma o desconforto em uma experiência quase hipnótica para o espectador.

 

Porém, talvez o filme mais aclamado de Lynch, que figura entre os 100 melhores de todos os tempos, segundo a conceituada revista Cahiers du Cinéma, seja Cidade dos Sonhos (2001). É uma das raras produções do século 20 a ser incluída nessa lista, talvez apenas com Fale com Ela (2002), de Pedro Almodóvar, como outro concorrente. Cidade dos Sonhos mistura realidade e ficção de uma maneira que desafia o entendimento linear, com uma narrativa que leva a personagem principal, Diane Selwyn, a questionar sua identidade e os limites entre o sonho e a realidade. O filme é uma exploração da memória, do desejo e da identidade, utilizando a cinematografia e a edição de forma magistral para criar um ambiente de total desorientação. Abordei sobre esse filme no meu recente texto, https://www.recantodasletras.com.br/cronicas-sociais/8241991 (Os Homens Ocos, a Morte de um Sonho e as Drogas)

 

O cinema perdeu um gênio, um grande idealizador, alguém que foi capaz de produzir histórias, personagens e ambientes ímpares, que destoavam totalmente da realidade. David Lynch pode ser considerado uma atualização e um discípulo direto de Luis Buñuel, ambos compartilhando a visão de que o cinema deve ser uma ferramenta para explorar o subconsciente e a realidade fragmentada. Ele nos deixou aos 78 anos, mas sua obra será mais duradoura que o bronze, como diria Horácio. Seu legado, único e inimitável, permanecerá para sempre na história do cinema, desafiando as convenções e inspirando novas gerações de cineastas e espectadores a ver o mundo de uma forma totalmente nova.

 

 

DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo)
Enviado por DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo) em 17/01/2025
Alterado em 18/01/2025
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