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DAVE LE DAVE
SIM, ELE MESMO
Textos

A SOCIEDADE FORMA O  CORPO DO INDIVÍDUO

Este texto é a continuação do meu artigo O corpo marcado pelo poder, que aborda historicamente como o ser humano é moldado pelas relações de poder às quais seu corpo é submetido, seja por instituições de ensino ou por poderes disciplinadores, como prisões e formas de coerção.

 

Para uma melhor compreensão, é necessário definir o que é poder. Já tratei disso no texto A maior capacidade humana, mas aqui vou retomar brevemente o conceito.

 

Poder não é algo unitário, algo que algumas pessoas possuem enquanto outras não. Tanto Michel Foucault quanto Pierre Bourdieu concebem o poder como uma relação de forças em disputa. À medida que essa disputa se inclina para um dos lados, surgem as formas que moldam a sociedade.

 

É nesse contexto que Foucault denomina o direito como uma forma jurídica. Ele entende a disciplina jurídica como o resultado de uma disputa histórica de forças que, em determinado momento, adquire uma forma específica. Essa forma histórica pode ser recortada, como uma fotografia. Podemos chamar isso de campo social, como o via Bourdieu.

 

Para o sociólogo francês, o campo social não é um espaço físico, mas um espaço delimitado pelos agentes sociais, ou seja, pelos indivíduos que pertencem a ele. No caso do campo jurídico, esses agentes são os magistrados. Esse campo é ao mesmo tempo estruturado e estruturante: os agentes ajudam a moldar o campo social, mas também são moldados por ele.

 

Há uma infinidade de campos sociais: o dos médicos, dos jogadores de futebol, da política, entre outros. Esses campos são fundamentais para a criação da memória e da identidade dos agentes que neles atuam (Bergson). Segundo Bourdieu, a convivência em um campo social faz com que os indivíduos adquiram o habitus, uma disposição inconsciente de agir, que é absorvida pelo corpo e reproduzida automaticamente.

 

Por exemplo, o advogado recém-formado aprende, por meio do ensino e da convivência, uma linguagem específica do campo jurídico, conhecida pejorativamente como “juridiquês”. Suas manifestações nos autos, suas defesas e seus discursos refletem essa interação social com outros advogados. Ele internaliza certos comportamentos a ponto de considerá-los naturais, adquirindo uma memória mecânica, como diria Henri Bergson. Essa memória é a mesma que usamos ao dirigir um carro: no início, pensamos em cada ação (trocar marchas, pisar na embreagem), mas, com o tempo, essas ações se tornam automáticas.

 

Para ter sucesso em um campo social, o indivíduo precisa naturalizar seu comportamento. Suas ações devem parecer inconscientes, mas perfeitamente adequadas ao campo. Agir com naturalidade é essencial. Se suas ações forem pensadas demais, parecerão mecânicas ou artificiais.

 

Pegue o exemplo de um estudante recém-ingressado na faculdade. Ele é chamado de “bicho” ou calouro porque ainda não sabe se comportar no novo ambiente. Esse desajuste social é evidente e, por isso, existe o trote: um ritual simbólico que marca seus corpos e os lembra de que são iniciantes. Com o tempo, esses calouros vão internalizando os comportamentos e, ao se tornarem veteranos, passam a replicar o mesmo ritual nos novos ingressantes, perpetuando a dinâmica do campo universitário.

 

O ponto central é que agir bem é agir inconscientemente. A ação pensada é antinatural. O ser humano precisa internalizar seu comportamento e conhecimento para que suas ações pareçam naturais. Dirigir um carro, jogar videogame ou digitar no teclado são exemplos disso. No início, pensamos em cada movimento, mas, com prática e repetição, as ações se tornam automáticas e rápidas.

 

Essa ideia se aplica a diversas áreas. Quando aprendemos uma nova língua, começamos a dominá-la de verdade quando passamos a pensar nela. Ou veja o exemplo do jovem tenista João Fonseca, apontado como o possível “novo Guga”. Desde cedo, ele treina tênis para desenvolver movimentos naturais, que fluem como os de um bailarino. Dançarinos, aliás, não precisam pensar nos seus movimentos; eles simplesmente dançam.

 

Nietzsche também abordou esse tema em sua obra, exaltando a dança como símbolo de leveza e naturalidade. Ele dizia: “Eu só acreditaria em um Deus que soubesse dançar”.

 

Os franceses têm uma expressão: être bien dans sa peau (estar bem em sua pele). Isso significa agir de forma natural, sentir-se confortável consigo mesmo. Por outro lado, o ditado brasileiro “quando a cabeça não vai bem, o corpo padece” reflete a interdependência entre mente e corpo, que são inseparáveis.


A sociedade se torna corpo, faz parte dele, é o corpo, por meio da “memória” e da “identidade” social e institucional que criamos. Um exemplo claro disso é quando nos ruborizamos em uma situação social de vergonha alheia. É uma resposta instintiva que o corpo nos dá, indicando que algo deu errado. As regras estão internalizadas, inscritas, marcadas no corpo de forma indelével. Se as normas são violadas, o mecanismo de defesa do nosso corpo responde automaticamente, gerando sentimentos de constrangimento, empatia, vergonha, entre outros.

 

 

O ponto final deste texto é que a sociedade molda os corpos e forma os indivíduos por meio das relações de poder. 

 

 

DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo)
Enviado por DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo) em 15/01/2025
Alterado em 15/01/2025
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