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DAVE LE DAVE
SIM, ELE MESMO
Textos

O CORPO MARCADO PELO PODER

Neste texto, quero explorar como a sociedade atua por meio das relações de poder que exerce sobre os indivíduos, especialmente sobre seus corpos. Como essas relações moldam os modos de pensar, forjam ideologias, muitas vezes estigmatizam os sujeitos e os colocam dentro de narrativas que parecem inescapáveis.

Para isso, tomarei como ponto de partida Vigiar e Punir (1975), de Michel Foucault, e atravessarei trabalhos de pensadores como o antropólogo Pierre Clastres, o sociólogo Pierre Bourdieu, o conto Na Colônia Penal, de Kafka, e conceitos sobre memória, identidade e linguagem de Henri Bergson e Friedrich Nietzsche. Também mencionarei e conectarei essas reflexões aos meus textos anteriores, como A Maior Capacidade Humana e O Que é Violência?. Por fim, como um tecelão que manuseia habilmente seus fios emaranhados com mãos firmes, mas gentis ao mesmo tempo, ou como uma aranha que tece sua teia, trarei essas análises para o âmbito pessoal, conectando-as à minha vivência.

 

Foucault inicia Vigiar e Punir com uma descrição impactante das práticas punitivas antes do século XVIII, que eram marcadas por espetáculos públicos. A punição era uma exibição de poder do soberano, que dispunha do corpo do condenado ao seu bel prazer para reforçar a ordem e a lei. Ele relata práticas como amarrar os membros de um condenado a cavalos, que os puxavam até dilacerar o corpo, ou mergulhar prisioneiros em banhos ferventes. Esses atos violentos não visavam a reabilitação, mas sim afirmar o controle do soberano sobre o corpo.

 

Essa descrição encontra ecos no trabalho de Pierre Clastres em A Sociedade Contra o Estado. Clastres analisa rituais de violência em sociedades “primitivas”, mostrando que esses atos não tinham a finalidade de consolidar o poder individual, como nas sociedades modernas descritas por Foucault, mas sim de reforçar a coesão do grupo. Ele descreve, por exemplo, o ritual em que jovens colocam as mãos em ninhos de formigas ferozes para demonstrar força e dedicação à comunidade, provando estarem prontos para a vida adulta e para defender o grupo.

 

Na literatura, Franz Kafka, em seu conto Na Colônia Penal, ilustra um sistema de punição grotesco e simbólico. Ele narra a existência de uma máquina que grava o crime do condenado em sua pele como uma forma literal de punição e memória. A dor física, aqui, não apenas castiga, mas também grava na carne a lembrança e o significado da transgressão, ecoando o que Nietzsche descreve na Genealogia da Moral. Para Nietzsche, como explico no meu texto A Maior Capacidade Humana, o surgimento da linguagem e da memória humana foi marcado por experiências dolorosas. Na segunda tese da obra, ele argumenta que as sociedades gravam seus valores, leis e normas nos corpos dos indivíduos através da dor, forjando identidades e valores.

 

Foucault também aborda, em Vigiar e Punir, a transição do poder soberano para o poder disciplinar a partir do século XVIII. O castigo deixa de ser um espetáculo público e passa a ser aplicado de forma disciplinada, com o objetivo de “corrigir” o indivíduo e reintegrá-lo à sociedade. Instituições como prisões, escolas, hospitais e quartéis se tornam mecanismos de vigilância e disciplina, moldando comportamentos, pensamentos e corpos. Essas instituições controlam não só o que as pessoas fazem, mas como pensam e como se percebem.

 

O Método Ludovico, exemplificado no filme Laranja Mecânica (adaptação do livro de Anthony Burgess), ilustra essa mudança. Em vez de infligir dor física, Alex é condicionado psicologicamente para rejeitar a violência, mesmo que isso signifique perder sua liberdade de escolha. A técnica mostra como o controle disciplinar se desloca para a mente, exemplificando o modelo de vigilância e normatização descrito por Foucault.

 

Por fim, Foucault conclui que o modelo ideal de controle é o panóptico, um sistema proposto por Jeremy Bentham. No panóptico, os prisioneiros não sabem se estão sendo observados, o que os leva a internalizar a vigilância e a monitorar seus próprios comportamentos.

 

Essas ideias conectam-se ao conceito de memória e identidade de Bergson, que sugere que as experiências vividas moldam profundamente a identidade de um indivíduo. As instituições não apenas controlam os corpos, mas também criam uma “memória institucional”, que condiciona as pessoas a aceitar certos papéis e normas.

 

No meu caso pessoal, ao passar por uma clínica de recuperação, fui condicionado a internalizar o discurso dos 12 passos e a rotina de recuperação. Essa repetição criou em mim a identidade de “adicto em recuperação”. Contudo, mesmo após minha “reintegração” à sociedade, o estigma persiste. Assim como um ex-presidiário, um ex-adicto muitas vezes carrega uma marca social que limita suas relações e sua autopercepção.

 

Essa dinâmica de poder e estigma dialoga com o conceito de violência simbólica de Pierre Bourdieu, que também abordo sob outra perspectiva em meu texto Sexo e Violência?. Bourdieu argumenta que as classes mais baixas não são inferiores por natureza, mas pela internalização de discursos que as colocam nessa posição. A sociedade moderna, ao favorecer os ricos e limitar as oportunidades dos pobres, perpetua a desigualdade. Esses discursos são tão internalizados que muitas vezes os próprios oprimidos os reproduzem, aceitando o sistema como natural.

 

Essa dinâmica de controle e internalização está intimamente ligada ao conceito de capital cultural de Pierre Bourdieu. O sociólogo argumenta que a sociedade impõe valores e formas de comportamento que são internalizados, especialmente pelas classes sociais mais baixas, criando um “capital cultural” que perpetua a desigualdade. Instituições culturais, como escolas e famílias, transmitem esse capital, de geração em geração, moldando não só nossa percepção de nós mesmos, mas também nossa posição social. Esse processo vai além do corpo físico, alcançando a mente, a memória e a identidade, criando marcas invisíveis que nos definem.

 

No meu caso, o silêncio e a indiferença de alguém que amo se tornam uma dessas marcas profundas, como uma sentença que carrego no corpo e na alma, semelhantes às que Kafka descreve em Na Colônia Penal. Não sei se esse silêncio resulta da distância social ou do estigma de ser um ex-adicto, mas ele me afeta profundamente. No entanto, acredito que ninguém está preso ao passado, e minha intenção é superar essas marcas, mostrando a mim mesmo e à sociedade que sou digno de confiança e respeito.

DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo)
Enviado por DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo) em 14/01/2025
Alterado em 14/01/2025
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