Da mesma forma que eu escrevi sobre meu livro predileto recentemente, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, eu pretendo escrever agora sobre meu filme favorito, Era Uma Vez na América, de Sergio Leone. Sim, é bem possível que esse de fato não seja o melhor filme já feito, assim como A Montanha muito provavelmente não é o melhor livro já escrito, mas é a história que mais fala ao meu coração, com a qual mais me identifico e que tem mais elementos que me agradam e me chamam atenção, muito embora Era Uma Vez na América tenha grande falha de roteiro e uma cena, ao meu ver imperdoável, que é uma mácula no filme, na construção da trajetória do personagem principal. Essa cena me faz distanciar totalmente dele, e não me identificar nem um pouco, apesar das semelhanças na história e, inclusive, no nome: David. E se demorei para escrever sobre esse filme até hoje, foi justamente por ele conter essa cena, que quase o estraga completamente, apesar de não ser explícita, mas com uma carga emocional e um significado muito fortes para mim. Ao longo do texto, explicarei o porquê.
Se eu fosse diretor de cinema, ou faria filmes viscerais com base na realidade crua do mundo, com uma estética independente, meio Gaspar Noé, uma pedrada igual Michael Haneke, uma onda mais reflexiva e filosófica a Lars Von Trier, a sobriedade dos irmãos Dardenne ao retratar o real, algo que reflita as dimensões da arte pela visão dionisíaca do mundo. Ou algo puramente apolíneo, onírico, sonhador, como alguns filmes do Wes Anderson, que não têm nenhum paralelo com a realidade, mas parecem uma fábula, com uma estética própria e muita originalidade. Um Labirinto do Fauno, um filme que aprecio bastante, ou Sonhos, do mestre Akira Kurosawa. Mas alguns filmes parecem refletir tanto elementos apolíneos quanto dionisíacos. É o caso de A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino, por exemplo, que tem imagens lindas, que vi umas três vezes no cinema, de tão incríveis. E esse, Era Uma Vez na América, que tem fotografia linda, brilhante, mas o tema é corrosivo e impactante, é sobre a máfia: uma espécie de O Poderoso Chefão, mas, ao invés de italianos, são judeus. Os cenários são lindos, as composições estéticas de Sergio Leone dariam um quadro, e a música composta pelo brilhante Ennio Morricone transforma o filme numa obra-prima. Principalmente a música tema, e Cockeye’s Theme, são inesquecíveis. A história, além da criminalidade, fala sobre nostalgia, amor (não correspondido), fracasso, perda, luto, arrependimento, superação de adversidades sociais e ascensão social, mesmo por meios ilegais, como a criminalidade.
O bom de fazer um tempo que eu não o vejo é que eu não vou contar a história toda, como costumo fazer nas minhas resenhas. Apenas vou dar uma pincelada sobre o que é mais importante, para instigar a quem não viu a assistir. O personagem principal é David (Noodles), interpretado por Robert De Niro, um garoto pobre, que mora na periferia de Nova Iorque, marginalizado, sem muito futuro ou esperança, a não ser na marginalidade. Apesar da pouca esperança, ele é apaixonado, desde a infância, pela encantadora e bela Deborah, filha de um mercadeiro do local. Ela é uma garota esforçada, determinada, disciplinada, totalmente oposta a David. Representa o conflito entre amor e aspiração, além de simbolizar aquilo que Noodles nunca conseguiu alcançar: o amor ideal e inatingível. Os dois vão protagonizar as cenas mais bonitas que eu vi no cinema, pelo seu significado, mas também a mais trágica ao mesmo tempo.
Primeiro, falemos das flores. As transições que Sergio Leone opera entre passado e presente são bem suaves e criativas. Em uma cena antológica, Noodles adulto observa um pedaço de tijolo solto no armazém da venda dos pais da Deborah, onde, escondido, ele a via ensaiar seus passos de dança. Ele lembra dela mesmo jovem dançando. A câmera mostra, numa linda fotografia, a linda jovem bailarina dançando em passos suaves, harmônicos e lúdicos. Mas ela sabia que estava sendo observada por Noodles e despiu a roupa de bailarina na frente dele. A câmera de Leone é pudica ao observar o dorso nu da jovem e Noodles, estático, observando, como se ela fosse algo sagrado, a Vênus de Milo. Há uma certa fumaça na cena, talvez, que confere um toque onírico de sonho, quando Noodles escorrega e é descoberto em seu esconderijo. Essa passagem é muito bonita e repleta de poesia.
Outra passagem repleta de lirismo, que me faz aproximar desse personagem pelo amor inalcancável que ele vive, representado pela figura até mística de Deborah, que demonstra seu amor por ele, embora ele seja um “amor agridoce”, um misto de admiração e frustração, é quando ela lê o seguinte poema de autoria dela para ele:
“Meu amado é branco e rosado. Sua pele é do mais puro ouro. As maçãs de seu rosto, como um manto de ervas. Embora não tome banho desde dezembro passado. Seus olhos são como olhos de pombo… seu corpo, como branco marfim, suas pernas, como pilares de mármore. Em calças tão sujas que ficam de pé sozinhas. Ele é tão adorável… mas sempre será um vagabundo e nunca será o meu amado. Que pena”.
É de chorar de tão tocante e quanto essa cena me marca, e me é significativa de alguma maneira. Depois que ela recita isso, Noodles se aproxima dos lábios dela, e, perto do beijo iminente, Max o chama, interrompendo o momento. E ele faz a sua escolha: o caminho do crime e do caos, representado por Max, em vez da paz, amor equilibrado e tranquilidade, representado por Deborah.
Outra passagem onírica, de sonho, é quando Patsy, sabendo que uma de suas amigas de infância, Carol, mais rechonchuda, por ser levada pelo prazer da gula, se entregava à primeira profissão do mundo, em troca de um bolinho recheado, ele comprou o bolinho e esperou na frente dele, aguardando o momento em que perderia sua virgindade. Mas ali parado, ele fitou detidamente o bolinho, com os olhos cheios de lascívia, e despiu o bolinho lentamente, camada por camada, num ato quase libidinoso, preferindo o prazer de degustar o bolinho ao ato sexual. É uma cena ao mesmo tempo muito inocente, lúdica e sensual.
Voltando à trama, Noodles é salvo pelo seu destino de mediocridade ao se encontrar com Max, um garoto extrovertido e carismático, mas muito desenrolado, que insere David de cabeça no mundo do crime e da máfia, junto com seus amigos de criação, Cockeye, Patsy e Bugsy. Eles fazem uma parceria que duraria até a vida adulta. O negócio deles é vender bebida alcoólica durante a Lei Seca, algo como Al Capone. Não quero contar a trama toda, mas um dos membros da gangue de David é morto por uma gangue rival, ainda quando eram jovens, o que fez ele desferir diversas facadas no inimigo para se vingar, culminando na sua prisão em flagrante. Ele passou todo esse tempo na prisão e o filme corta anos depois para Noodles já adulto.
Agora, a cena que me distancia totalmente de Noodles e de qualquer semelhança com essa personagem, e que tenho que relatar aqui, é o motivo pelo qual demorei tanto tempo a escrever sobre esse filme, que, mesmo com esse grande dissabor, é o meu predileto, por tanto que se comunica diretamente comigo, é a cena em que Noodles reencontra Deborah, já adulta. Organiza um encontro perfeito com o dinheiro do crime, jantar, limusine, mas no veículo, a garota não quis ceder às investidas amorosas dele, e ele quis forçá-la a força, abusando-a sexualmente. Sinceramente, essa cena jogou uma pá de cal em qualquer afinidade ou identificação que eu poderia criar com essa personagem, embora as semelhanças, inclusive no nome e na história de amor idealizada. Mas o que ele sente então por Deborah não é amor de verdade. De alma gêmea. Pois então ele jamais tentaria abusar dela. Quem ama verdadeiramente, amor de quem acha que encontrou a parte que falta, jamais vai buscar o mal da outra pessoa, por maior que seja a nossa frustração, e que sejamos guiados por afetos. O afeto da paixão, do amor, que é a alegria acompanhada da ideia da causa, segundo Espinosa, é muito maior que todos os outros afetos. Então, o que fez Noodles é imperdoável. E o que ele sente não é amor verdadeiro.
No mais, é um filme de quase 4 horas de duração, com algumas lacunas no enredo, que não é perfeito, é verdade, cujo desfecho talvez não agradará a todos. Mas, mesmo com essa cena do abuso totalmente dispensável e equivocada, e essas falhas, o filme é tão bom e toca em mim em assuntos tão pessoais, numa mistura de nostalgia, presente e futuro, e esteticamente belo, que o computo em número um na minha lista de filmes prediletos.