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DAVE LE DAVE
SIM, ELE MESMO
Textos

A MONTANHA MÁGICA - THOMAS MANN

Para encerrar 2024, um ano alvissareiro em que, apesar do meu conflito interno — uma sensação de mal-estar interno que contrasta fortemente com meu estado de espírito animador —, foi marcado por grandes reflexões, decidi terminar em grande estilo literário escrevendo sobre meu livro predileto: A Montanha Mágica, de Thomas Mann.
 

Deleuze, filósofo que ao fazer crítica literária destaca que mais importante do que o conteúdo literal nas linhas de um livro é o que se passa entre elas, nos espaços subjetivos em que a obra encontra o leitor, criando novas interpretações e significados. É sobre esse encontro entre a obra e minha subjetividade que quero falar, tomando A Montanha Mágica como guia.

 

Thomas Mann, ao criar Hans Castorp, a figura central da trama, demonstrou um talento extraordinário. Ele mesmo define Hans como “um sujeito simples e banal, mas com uma história especial” — e histórias especiais, afinal, não acontecem a qualquer pessoa, o que, paradoxalmente, o torna único. Dentre todos os personagens literários que já conheci, Hans é o que mais se aproxima da minha própria personalidade.

 

Já tentei me identificar com Aliocha, de Os Irmãos Karamázov, mas, sendo menos crente, essa identificação se torna limitada. Ou poderiam pensar que tenho algo de Ivan Karamázov, devido ao gosto intelectual e certa visão de mundo, mas isso seria um equívoco: Ivan é sombrio demais, um personagem dissimulado, e não esqueçamos que foi ele o mentor intelectual do assassinato de seu pai. Se fosse para buscar semelhanças em camadas mais profundas, talvez houvesse algo de Nikolai Stavróguin, de Os Demônios, mas não se encaixa plenamente.

 

Pela singeleza, temperamento pacato, certo gosto burguês pela estética e reflexões, Hans Castorp é, de fato, meu espelho literário.

 

As semelhanças são muitas. Hans tem uma maneira polida de ouvir as ideias alheias, absorvendo-as sem um julgamento moral imediato, ao mesmo tempo em que guarda internamente suas próprias opiniões e impressões. Por exemplo, ele apelida Settembrini, seu mentor humanista, de “tocador de realejo”, demonstrando uma superioridade velada. Essa postura — internalizar pensamentos e só enunciá-los em momentos especiais — reflete muito do meu próprio modo de ser.

 

A trama de A Montanha Mágica é um exemplo de alta literatura. Apesar de abordar ideias sofisticadas, a linguagem de Mann não é inacessível, embora exija contemplação e esforço reflexivo. A história, em si, é simples: Hans visita seu primo Joachim Ziemssen em um sanatório nos Alpes Suíços, onde ele trata de um início de tuberculose. Hans planejava ficar apenas uma semana, mas essa estadia se prolonga por sete anos. Nesse período, ele embarca em uma jornada de autoconhecimento, erudição e busca por sentido, guiado por figuras como Settembrini e Naphta, que travam debates ideológicos intensos enquanto disputam a atenção de Hans.

 

Settembrini, um humanista progressista, vive modestamente, em oposição ao ex-jesuíta Naphta, que defende ideias autoritárias e vive tentando cercar-se de luxo. Hans escuta os dois com certo distanciamento, buscando apenas ampliar sua visão de mundo, sem tomar partido de imediato. Essa disputa ideológica entre humanismo e autoritarismo é um retrato das tensões do início do século XX.

 

Um dos aspectos mais fascinantes da obra é a maneira como Thomas Mann trabalha o tempo. Nos primeiros dias de Hans no sanatório, a narrativa é lenta, detalhando minuciosamente cada aspecto de sua adaptação. Entretanto, à medida que ele se acostuma, os anos passam em poucos capítulos, e a cadência da narrativa acelera. Mann explica essa percepção do tempo com uma reflexão brilhante:

 

“Quando nos divertimos, o tempo parece passar rápido; em momentos de monotonia, ele se arrasta. Contudo, ao olhar para trás, os momentos de alegria ganham profundidade na memória, enquanto os períodos monótonos desaparecem, reduzindo-se a um desperdício de vida.”

 

Em resumo, Mann quer dizer que o tempo, para ser vivido plenamente, precisa estar preenchido de experiências que deixem marcas na memória. A monotonia, por outro lado, embora pareça se arrastar no momento, é esquecida rapidamente e pouco contribui para o enriquecimento da vida. Ou seja, a longo prazo, anos de monotonia acabam se condensando e parecem passar num instante. Por outro lado, pequenos momentos memoráveis, que podem parecer breves enquanto os vivemos, no futuro ampliam nossa percepção do tempo vivido, enriquecendo nossa experiência e nos oferecendo novas histórias para compartilhar ao longo da vida.

 

O tema central do livro, porém, é a morte — e aquilo que a transcende: o amor. A narrativa é permeada por perdas, naturais em um sanatório, onde os pacientes frequentemente desaparecem de um dia para o outro. Contudo, o amor, especialmente o de Hans por Clavdia Chauchat, serve como contraponto. Esse amor talvez não seja uma paixão arrebatadora, como descrita por Stendhal em Do Amor, mas um “amor-gosto”, com seu clímax em uma única noite de carnaval.

 

Outro momento marcante é o encontro de Hans com o amante de Clavdia, um holandês carismático e vital, constrastando com a personalidade introspectiva de Hans. Apesar disso, ele não sente ciúmes ou ressentimento; ao contrário, admira o homem e tenta aprender com ele, mostrando uma postura madura.

 

Recomendo A Montanha Mágica a todos, mas especialmente aos médicos. A obra não é apenas uma reflexão sobre a saúde e a doença, mas também um exercício de empatia com o sofrimento do próximo. Há um capítulo inteiro em que Mann utiliza termos médicos técnicos com lirismo poético, criando uma passagem de beleza singular.

 

No final, Hans deixa a montanha para enfrentar a guerra — um contraste brutal com o ambiente calmo e contemplativo do sanatório. Contudo, após sete anos de aprendizado, não há dúvida de que ele encara a tragédia da guerra muito mais preparado.

 

Para mim, A Montanha Mágica é uma obra sobre a busca por autoconhecimento, beleza, amor e sentido, mesmo sob a sombra da morte. É um livro que marcou profundamente a minha alma e que eu recomendo a todos que desejam refletir sobre a existência humana.

 

Feliz Ano Novo!

DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo)
Enviado por DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo) em 31/12/2024
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