Antes de entrar propriamente no texto, um esclarecimento aos meus parcos leitores. Estou escrevendo bastante porque, como compartilhei no meu texto sobre minha Dependência Química (link, clicando, para quem não leu), eu pretendo ficar ausente do Recanto por quinze dias, se restringirem meu uso de celular. Por isso, esse será meu penúltimo texto; o último, cujo título será sobre estratégias para ficar longe do vício, falará, de um viés filosófico e de experiência pessoal, como pretendo me libertar das garras da adicção. E como me fez bem o texto-confissão, me tirou uma tonelada das costas. Se, apesar dele, eu perceber que as visualizações dos meus textos continuam aumentando e, com isso, eu inferir que a minha pessoa amada continua me lendo, com certeza indicará que eu fiz bem. Se, por outro lado, ela sumir de vez, talvez eu até não veja mais motivo de continuar escrevendo, apesar de adorar e me fazer bem. E há tanto para dizer, e tão pouco tempo…
Então vamos ao texto:
O Relapso do Servidor Público
No trabalho, convivo com diversos funcionários públicos, e posso dizer com firmeza que são raros os que zelam por seus deveres como servidores. A maioria se encosta no cargo. Agora, coisa unânime é que ninguém cumpre a carga horária do contrato. Aqueles que teriam que trabalhar 8, cumprem apenas 6. Os de 6, 5, com uma pausa para almoço e alguns até somente 4. E muitos dos funcionários do posto de saúde em que eu trabalho são bem remunerados, alguns chegam a ganhar mais do que os próprios médicos. Mas como explicar esse relapso do servidor público de modo geral? Para isso, irei me valer da teoria do sociólogo francês Pierre Bourdieu, a qual ele chamou de habitus e campo social.
Em palavras simples, habitus é um conceito que significa quando nosso corpo adquire disposições de agir inconscientes afetadas pelo nosso ambiente social no qual estamos inseridos. Usando um exemplo para facilitar o entendimento, há o habitus do campo social jurídico. No campo social jurídico, por exemplo, advogados desenvolvem um modo peculiar de falar e escrever. Esse “habitus” se reflete no uso de uma linguagem técnica e formal, que muitas vezes é difícil de entender para os leigos. Um advogado não apenas usa um vocabulário específico, mas também adota um estilo de comunicação que se torna quase um código interno entre os profissionais da área. Quando eles se comunicam em público ou em documentos legais, o modo de falar e escrever segue padrões que fazem parte do “habitus” do campo jurídico. Isso pode ser visto nas sentenças formais, na escolha das palavras e até na postura durante uma defesa, algo que é, muitas vezes, incompreensível para quem não tem o mesmo treinamento ou experiência nesse campo.
Esse comportamento não é algo planejado, mas sim internalizado ao longo do tempo. Um advogado em início de carreira, ao interagir com outros colegas ou ao se deparar com textos jurídicos, começa a adotar, sem perceber, esses padrões de comunicação. Dessa forma, o habitus jurídico vai moldando a maneira como ele se expressa, tanto verbalmente quanto por escrito. Isso não se limita apenas à linguagem, mas também à forma de pensar e agir dentro desse campo social, em que se espera uma postura de racionalidade, lógica e imparcialidade.
O mesmo acontece com outros campos sociais, como o de líderes de torcida organizada, por exemplo. Todos internalizam inconscientemente um modo de agir que às vezes inclui brigas generalizadas, mas também um certo modo de falar e agir típicos desse campo social. A mesma coisa no campo social político, ou artístico. Cada campo social, segundo Bourdieu, tem seus troféus, que são os prêmios e objetivos de consagração social. Por exemplo, no campo social do cinema, há o Oscar. No futebol, a bola de ouro. E tanto o artista quanto o jogador de futebol dão entrevista e falam praticamente da mesma maneira, pois adquiriram o habitus de seus campos sociais. No campo social da periferia, por exemplo, onde se fala gírias, se veste da mesma maneira, ouvem o mesmo tipo de som. Tudo isso é habitus adquirido de forma inconsciente que faz todos agirem de maneira similar. Mas, às vezes, a sociologia de Pierre Bourdieu é acusada de elitista, porque, no campo social das empregadas domésticas, por exemplo, qual é o troféu que elas disputam? É difícil de dizer. No caso de advogados, é ser juiz ou ministro do STF. Na política, ser presidente da república, prefeito, governador, senador. Quanto maior o cargo, maior o troféu. Agora, no caso dos menos favorecidos, como os pedreiros ou motoristas de aplicativo, isso não fica muito claro.
Então, explicados os conceitos de habitus, campo social e troféu, eu volto ao problema do relapso do servidor público, a falta de produtividade, a apatia no trabalho, a acomodação excessiva. Todos adquirem o habitus de servidores públicos, que trabalham sempre se esforçando minimamente, na sua maioria. Os que se esforçam mais um pouco, muitas vezes são os que pretendem alcançar troféus do campo social público, como um cargo mais elevado, que remunere mais. Não vou generalizar, mas até agora não conheço nenhum que cumpra sua carga horária de modo exemplar. O habitus do campo social do servidor público explica o motivo do relapso, na verdade, uns copiam os outros, de forma muitas vezes inconsciente.