Ao analisar o poema Tabacaria de Fernando Pessoa, Clóvis — que considera o melhor romance em língua portuguesa O Primo Basílio, de Eça de Queiroz (autor que também adoro) — chamou atenção com sua análise brilhante e óbvia de um trecho que não é o mais citado por aí, mas merece luz.
No entanto, o que mais me chamou atenção foi a ironia do filho de Clóvis. Ele comentou: “O que o pai vai fazer quando as pessoas cansarem dessas besteiras que ele diz?”.
Ora — pra usar uma interjeição que o próprio Clóvis costuma usar — isso vindo do próprio filho mostra que a essência do homem é o egoísmo, que mora ao lado, mesmo entre nossos familiares.
Não devemos confundir isso com rancor ou maldade. É algo natural: uma vontade de potência que se sente diminuída pela expansão do outro — ainda que esse outro seja seu pai, sua mãe, sua irmã.
A vontade de potência egoísta, muitas vezes inconsciente, tenta moldar o mundo por meio da expressão de si. Essa expressão deve ser criativa. Agora, picuinhas e pequenos ataques indiretos são coisa de moscas do mercado dos últimos homens.
Veja, por exemplo, a ironia destilada pelo dono da academia, voltada a alguém que se recusa a competir, mas que, mesmo assim, alcança resultados melhores do que a maioria — com simetria e elegância.
E por quê? Porque lê, vê filmes, escuta aulas, escreve enquanto treina e se alegra com isso.
Isso não é dado para qualquer um. Para fazer isso, é preciso saber o que ler, o que ver, o que ouvir e, principalmente, o que escrever.
Como diz Heráclito: você pode até ter conteúdo, mas ele não vale nada se você não souber usá-lo na prática. A filosofia que vale é a que ilumina a vida, a que ajuda a viver melhor.
Caso contrário, você é como aquele relógio do Silvio Santos que só serve para dar as horas.
A resposta à ironia alheia? É simples: ler também faz parte do treino. Fortalece outro tipo de músculo.
No poema, Clóvis destaca o trecho em que Pessoa diz que não sabe o que será amanhã, já que não sabe o que é hoje.
A ironia afiada do eu lírico se mostra quando ele reflete que pensa tanto de si mesmo, e há tantos outros que pensam o mesmo, que não pode haver tantos assim.
Ele se chama de “poeta de mansarda”, alguém que se acha um gênio, mas há tantos que se acham gênios que a História não consagrou nenhum sequer. Portanto, ele sempre será “o da mansarda”.
Clóvis, então, comenta que Pessoa erra — porque ele é, de fato, um gênio.
Mas não, Clóvis. O gênio consagrado é o Pessoa. Quem escreve o poema é o seu heterônimo genial e desconhecido Álvaro de Campos — assim como era o ainda mais desconhecido, e pobre materialmente, embora riquíssimo espiritualmente, Bernardo Soares.
Enquanto tivermos essa riqueza de espírito, sempre seremos abundantes — supérfluos, até — em riqueza, mesmo sem bens materiais.
Para alcançar isso, é essencial saber os canais de fuga. Fugir dos comentários do filho de Clóvis, ou da ironia do dono da academia. Cultivar nosso silêncio, nossa solidão, nossa força interna.
Proteger-nos do egoísmo e da inveja inconsciente dos outros.
E é justamente sobre isso que Pessoa fala no trecho mais brilhante — e pouco ressaltado — do poema. Um ponto que merece destaque.
Nietzsche já dizia que o que há de mais elevado no homem é a capacidade de avaliar, de estimar valores. Avaliar as pessoas do alto — com os olhos da montanha — como uma águia.
Capturá-las com o bico, como se fossem minhocas, alimento, presas fáceis.
E Pessoa faz isso com maestria neste trecho:
“Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.”
O autor julga a pequena — “dormente”, para usar o termo de Heráclito para os alienados dos pensamentos elevados.
Ela apenas come chocolates. Não pensa. Não considera o nível de glicose, nem os efeitos adversos disso na saúde.
É como os marombeiros alheios à própria dieta, que se exercitam sem método e comem feito porcos.
Ou os que transformaram a maromba em zona de conforto — pegam peso como burros de carga. E por isso se incomodam com a minha altivez: alguém que une resultado com conteúdo, graças ao conhecimento prático, método e disciplina de si.
Enquanto esses porcos comem chocolate e treinam feito burros de carga, eu brilho.
Me exibo e roubo o brilho de todos. E mesmo diante da opacidade dos outros, não devo brilhar menos.
Porque em mim ainda reside muito caos — o bastante para parir uma estrela que dança.
Assim falou Zaratustra.
Assim falou Dave Le Dave.