Numa aula magna, um professor cujo nome, infelizmente, esqueci, recebeu os alunos numa sala completamente escura. Um breu total.
Ele abriu um pouco a cortina e apenas disse: “Dostoiévski”. A sala ficou um pouco mais iluminada. Abriu mais um terço da cortina e disse: “Tolstói”. A sala agora estava iluminada pela metade.
Então o professor olhou fixamente para a turma de alunos ignóbeis e, num gesto teatral, abriu totalmente a cortina, dissipando o breu. E então pronunciou, enfaticamente: “Pushkin”.
É engraçada essa encenação porque ela subverte a lógica de legitimidade e popularidade dos escritores russos. Sem dúvidas, o autor que mais li foi Dostoiévski — em várias investidas e número de livros. Depois, Tolstói, que só com Anna Kariênina e Guerra e Paz deve ultrapassar 1800 páginas.
Porém, meu livro predileto é curto: A Morte de Ivan Ilitch.
Pushkin, confesso, só li em alguns poemas isolados e contos. Mesmo assim, é ele quem o professor usou como ápice da iluminação.
Aliás, há um livro de contos russos organizado pela Editora 34 que é soberbo. Gogol, Turguêniev, Tchékhov, Górki — todos reunidos num único livro.
É como uma vodka destilada da alma russa.
Apesar de admirar profundamente os livros russos, e eles estarem entre meus prediletos, a minha literatura favorita é a francesa. Mas a clássica. Ao meu ver, símbolo do romantismo — e que atende ao meu gosto burguês-aristocrático.
Apesar de Os Irmãos Karamázov estar num panteão de qualidade, há uma crítica recorrente a Dostoiévski: dizem que ele não sabia escrever bem, no sentido erudito. Que escrevia como se fala. Que seus tradutores é que lapidaram seu estilo.
Sim, claro, Dostoiévski não sabe escrever. Quem sabe é você, crítico literário, cuja maior obra é escrever um prefácio que ninguém lê porque pula direto para o romance. Ou publicar artigos em revistas acadêmicas lidas por quatro pessoas.
O romance russo é mais filosófico e psicológico. Já o francês, mais lúdico, artístico, descritivo.
Não à toa, foi pela literatura russa que surgiram conceitos filosóficos importantes, como o niilismo em Pais e Filhos, de Turguêniev. Que talvez tenha sido transformado pela Legião Urbana numa música sofrível — já que hoje tirei o dia pra bater nessa banda de Brasília.
O niilismo aparece de modo ainda mais marcante em Os Demônios, de Dostoiévski. Ivan Karamázov é tido como um niilista arrebatado, e também como o mentor intelectual dissimulado do parricídio.
A literatura russa não propõe apenas histórias, mas convulsões morais.
A literatura alemã, ao meu ver, é muito influenciada por Hegel e sua dialética. Está em Goethe, na erudição clássica de Thomas Mann, na música e nos dramas de Wagner, na filosofia lírica de Nietzsche.
E, mesmo em Kant — cuja prosa é o anti-lirismo —, permeiam as ideias de razão, moral e ética que atravessam a literatura alemã. Kant não era literato, mas suas ideias são o esqueleto moral de muitos autores.
Sem falar em Schopenhauer e seu mundo como representação.
Em castelhano — que todos sabem ser um português mal falado — a literatura se resume a Dom Quixote, de Cervantes.
A uns bons degraus abaixo (ali no pré-sal literário), temos Gabriel García Márquez e sua escrita fantástica, Borges, Ernesto Sabato, Julio Cortázar, Eduardo Galeano…
Porém, acho que o pódio de bronze, em literatura, fica com a nossa brasileira.
Você vai achar poucos escritores piores que Machado de Assis, mesmo na Rússia ou na França. Escola do mulato brasileiro. Em ironia e humor, ele é insuperável. Nosso Balzac do cotidiano carioca.
E que existencialista francês bate de frente com o nosso Graciliano Ramos?
Que obra é mais pós-moderna e revolucionária do que o nosso Grande Sertão: Veredas? Mais experimental? Que relata melhor o sertanejo de forma brilhante? Obra mais inovadora que Ulysses ou Finnegans Wake, com certeza.
E que mulher — ou mesmo homem — escreve melhor que Clarice? Que romance é tão inovador quanto A Paixão segundo G.H. ou A Hora da Estrela?
E José de Alencar? Não simula, por vezes, a superação de muitos livros da Comédia Humana de Balzac?
Aqui se faz muita cultura, muita poesia, muita arte. Cinema? Pouco, é verdade. Futebol? Também, ultimamente.
Tanto é que tivemos que chamar um italiano para salvar a Seleção. E não foi Maquiavel, nem um renascentista. Se os italianos não conseguem salvar nem a deles, vão salvar a nossa?
Mas a deles carece de bons jogadores — e de craques, como todas as do mundo.
Mas craques na literatura, isso sim, nós temos. Eu gosto, amo o Brasil.
Meu problema é com os brasileiros.