Pai, prova da Tua santa paciência é aguentar minhas heresias ao orar misturando o profano e o sagrado. E há de me perdoar por mais esta: que eu creio em Ti, mas não na Tua igreja. Que creio igualmente em Teu Filho, mas não na Bíblia e no Novo Testamento.
Sou fã de Davi, com quem me identifico por razões que não precisam de explicações — até mesmo com sua versão em mármore, que espero um dia espelhar, com exceção do tamanho do membro diminuto. Porque até aí, o Senhor me concedeu um bom dote.
Será que o Senhor é capaz do riso? Ri das anedotas de um filho Teu? Nietzsche diz que só acreditaria em um Deus que dança. Eu, num que ri — que gargalha do céu vendo as presepadas dos seus filhos na Terra, como se assistisse as vídeos cassetadas do Faustão.
A maior historiadora do Livro Sagrado, Karen Armstrong, relata que a Bíblia era copiada de mão em mão — afinal, não havia gráfica, impressora, nem mesmo ChatGPT naquela época. E que, ao seu bel-prazer, descumpriam o mandamento ou maldição de “ai de quem acrescentar palavras à Bíblia”, fazendo acréscimos sem medo ou remorso para defender interesses próprios.
Meu Deus, e eu, que por falta de seda, já fumei maconha com papel da Bíblia por achar parecido… Pelo meu estado de graça atual, acho que o Senhor me perdoa. Mas vou parar de fazer graça para não abusar da Tua boa vontade.
Há a questão das forças de poder que Foucault levantava. E a Bíblia é, sim, resultado de uma relação de poder. Suas diferentes formas e versões, segundo cada doutrina, são versões de formas diferentes.
E onde eu mais sou cético é na religião — não desacredito de nenhuma, mas desconfio de todas. Porém, defendo que todos possam professar sua fé, por mais esdrúxula que seja: desde a Cientologia, o culto à própria imagem no espelho da academia, até torcer para o Corinthians.
Prefiro acreditar unicamente em Ti. Pois Tu estás em toda parte, como acreditava Espinosa. Tu és o ar que respiro, a água que me hidrata, o alimento que me sustenta física, moral e intelectualmente. És carne e espírito. Tu és minha vontade de potência. O sopro de vida, o verbo, até mesmo o gozo, o prazer, o riso, o orgasmo, a criação, o amor, o beijo. És poesia.
És reconhecimento? Não, não és. Eu não desejo de Ti nenhum privilégio, nada além do quinhão que me cabe. Contente igual com o que Nietzsche tinha — que vivia do próprio mérito e o reconhecimento. E, se ninguém nos dá nosso devido valor, nós tomamos. A opinião pública foge do nosso controle.
Os textos de minha autoria que mais gosto não são os que mais agradam à audiência. Depois de anos escrevendo sobre filmes, minhas melhores resenhas fiz em uma semana — sobre os filmes de Paul Thomas Anderson e Wim Wenders. Não seria mais uma heresia compartilhar, nesta oração, um link para divulgar meus textos? Ora, a oração não é justamente um hyperlink da Terra com o Céu?
Há quem ache o prazer uma culpa. Eu acho divino. E há os que maldizem a vida, falando até sobre a necessidade de dessexualizar o cérebro. Mas, na sabedoria que me concedestes, a melhor forma de dessensualizar o cérebro é justamente expô-lo à sexualidade.
É aquilo que Teu filho sofrido, Nelson Rodrigues, chamava de “efeito negro da Grapette”: aquele negro que vendia Grapette na praia — uma espécie de Fanta Uva da época — e era exposto a tantas mulheres atraentes que as olhava com certa indiferença estoica, tamanha sua convivência. E é assim que as vejo na academia: elas são tantas, e eu sou tão pouco. Mas, observando-as, já nem olho mais.
Hoje recebi uma mensagem parecida com a do ChatGPT celestial: que excedi meu limite de heresias por hoje. Porém, se aquele que Te disse “faça-me santo, mas não ainda”, enquanto bebia vinho nas sapatilhas das dançarinas da noite, virou santo… quem sabe eu também não me torne, um dia, meu Pai.
Amém.