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DAVE LE DAVE
SIM, ELE MESMO
Textos

 



Um Homem das Multidões e Solitário


 

O Maquinista e o Vazio

Homem das Multidões é um filme simples e fabuloso, filmado em 4:3 por Cao Guimarães — que, aliás, eu achava que fosse Cao Hambúrguer, do Castelo Rá-Tim-Bum.

 

O filme é uma visão intimista de um maquinista que transporta um monte de gente durante o dia e, apesar disso, é muito, mas muito solitário.

 

Mesmo com o amor silencioso de sua companheira de trabalho — que vai se casar, e cujo afeto talvez ronde em seu umbral —, ele permanece isolado. Mora sozinho. É tão solitário que fala consigo mesmo.

 

O único amor que conhece é o das prostitutas baratas que frequenta, nos quais o orgasmo é tão breve quanto os monossílabos que pronuncia ao longo do dia.

 


 

A Delicadeza do Simples

Assisti a essa película no cinema — e na TV Brasil, eu acho. Duas vezes. Nas duas, me surpreendi.

 

Como é preciso tão pouco para fazer um bom filme.

 

No seu apartamento, onde faz tudo sozinho, ele limpa seu cubículo com o esfregão como uma criança, fazendo o barulho de um trem novo e moderno que sonha em dirigir.

 

E não almeja mais do que isso: uma vida simples, banal, solitária — onanista.

 


 

Um Homem do Subsolo em São Paulo

Engraçado como o retrato e a metáfora de uma cidade grande cabem num maquinista — um homem do subsolo. Não de Petersburgo, mas de São Paulo.

 

Rodeado de gente tão sozinha quanto ele.

 

Como o solilóquio de Pessoa no mundo da Tabacaria.

 

A multidão que passa sem me ver, e eu a vejo a todos.

 

Gente ausente.

 

A multidão que nunca adentra meu mundo interior, apesar de estar tão perto. Perigosamente perto.

 

Tão longe, tão perto — como no filme de Wim Wenders.

 


 

A Sociedade do Isolamento

Na nossa sociedade, as pessoas nas metrópoles estão cercadas de rostos desconhecidos. Mesmo os amigos do Instagram permanecem ridiculamente solitários.

 

Como o homem ridículo de Dostoiévski, na iminência de dar um tiro na cabeça.

 

Metáfora contemporânea e atemporal, ainda que anacrônica, da nossa sociedade pós-moderna.

 

Eu gosto do transporte público. Dos transeuntes da multidão. Porque nela eu me escondo.

 

Sou autônomo mesmo rodeado de gente.

 


 

Carros e Solidão

Pra mim, o automóvel é o maior símbolo de egoísmo e individualismo.

 

Seus veículos transportam dejetos e poluição na atmosfera, muitas vezes para levar uma única pessoa do ponto A ao ponto B — muitas vezes, para trabalhar e fazer o lucro e a felicidade de outra pessoa, não a sua.

 

Carro só é símbolo de status se for artigo de luxo, pelo design — e quando está parado.

 

Parado, retirado da cadeia de utilidade egoísta. Só então vira arte. E não ego.

 


 

O Luxo de Andar

As pessoas preferem se deslocar de automóvel a andar.

 

Pra mim, sinal de luxo é poder ir a pé ao trabalho ou morar perto do metrô.

 

Não ir de carro. Ir andando. Em movimento. Sempre.

 

E gozar do meu anonimato enquanto continuo andando.

 


 

Giovanna Baby e o Lobo da Estepe

Uma garota solitária que conheço e desconheço — a ponto de nem saber como se locomove ou se tem habilitação.

 

Garota peculiar, cujo grande mérito foi roubar meu coração sem pedir licença.

 

Despojada. Sem mão armada. Sem ornamentos. Só beleza. Decoração da alma e dos sentimentos.

 

Essa garota, rodeada de pessoas, mesmo em seu condomínio, vê da janela a tabacaria do outro lado da rua — inacessível aos seus pensamentos.

 

Com seus amigos de jaleco branco, ou virtuais.

 

E, não obstante, como o maquinista. Como Travis Bickle. Como o homem do subsolo. Como o homem ridículo. Como o lobo da estepe.

 

Como este humilde escriba.

 

Permanece sozinha.

 


 

A Funny Girl de Mil Faces

Garota incomum. Garota burguesa. Socialista. Gaulesa. Princesa. Rainha. Plebeia.

 

Romântica. Excêntrica. Esquisita. Peripatética. Engraçada. Curiosa. Boêmia. Médica. Paciente. Tímida.

 

Instigante. Sedutora. Banal. Fantástica. Corajosa. Covarde.

 

Meio lusitana, meio italiana. Meio caipira, meio bucólica. Meio citadina. Mezzo calabresa, mezzo mussarela.

 

Multifacetada. Incrível. Humana, demasiadamente humana. E, ao mesmo tempo, divina.

 

Deusa. Mítica.

 

Funny girl com nome de perfume: Giovanna Baby.

 

Cujo aroma jamais senti.

 

Cuja pele jamais toquei.

 

Cuja voz desconsidero — mas escuto toda noite.

 

Cujos gemidos invadem minha mente em sonhos lascivos.

 


 

A Caminhada Imaginada

Se eu viesse a encontrar essa garota…

 

Se um dia eu visitasse seu pequeno condado perto do Mato Grosso do Sul — eu não iria querer conhecer de automóvel.

 

Iria caminhando.

 

Trotando ao seu lado, em uma rua ladrilhada por pedrinhas de brilhantes.

 

Talvez com nossos passos divergindo, como o do garoto pequeno e do pai em Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica.

 


 

Amor no Limiar da Linguagem

 

Voltando ao filme:

 

Quando o maquinista procura o prostíbulo, não é amor que ele está buscando.

 

O lugar tão inadequado para ele habitar…

 

Enquanto o possível amor — tácito, não falado — se casa. Justamente, sem amor.

 

Engraçado que haja amor no limiar da linguagem. Onde a comunicação se interrompe.

 


 

Amor Que Não Precisa de Voz

Só por isso há amor por quem nunca vi, nem senti, nem escutei a voz.

 

Mas cuja presença ausente sinto todas as noites.

 

De forma indelével no meu corpo, coração e mente.

 


 

O Amor Que Não Consigo Abandonar

O homem consegue subtrair amor do sexo. Já a mulher, eu não sei.

 

Brinquei com uma amiga querida, a quem estou devendo uma visita.

 

Ela me contou seu triângulo amoroso — sem amor por ninguém.

 

Eu disse que, independentemente de quem estivesse com ela, eu a visitaria. Só pra ficarmos juntos.

 

Ela disse que só se envolve com quem está apaixonada por ela.

 

Respondi que não entendo o que o amor tem a ver com o amor.

 

As mulheres até se entregam, mas há sempre aquela letrinha pequena no contrato.

 

Mas eu enxergo — com a lente de telescópio, microscópio ou lupa:

 

“Abandonar quem eu amo.”

 

Ora, como se abandona quem se ama?

 

Posso amputar um braço só pra deixar de estar doente?

 

Pra não ser mais contaminado pelo vírus do amor?

 


 

A Parte Que Falta

Não sou livre pra deixar de amá-la.

 

E ela desconfia do meu amor ainda.

 

Ora, se um robô vê a parte que o completa, ele não vai tentar encaixá-la?

 

Pra se sentir completo?

 

Como o Mega Man.

 

Ou o Homem de Lata de Oz, que buscava um coração?

 

Pois o meu coração é ela.

 


 

Muito Além do Amor

E ela me pergunta se serei capaz de querer só ela.

 

Será que mesmo agora não quero só ela?

 

Ora, se eu fizer amor só com ela, já será o dobro do que ando fazendo atualmente.

 

Já é um baita lucro.

 

Mas é muito mais que isso.

 

Muito além do jardim.

 

Muito além de sexo.

 

Muito além do amor.

 

É uma questão ética: ir atrás da parte que falta.

 


 

A Reforma Íntima

Por isso, tento melhorar a cada dia.

 

Para que, juntos, não precisemos de óleo para a engrenagem.

 

Com o poder dos hábitos.

 

Tenho adquirido o hábito de deixar tudo organizado — mesmo contra minha tendência ao caos.

 

Para ajudar minha mãe nas tarefas diárias, mesmo sem tempo.

 

Para adquirir bons hábitos — perenes, duradouros.

 


 

Amor Estoico

Faz parte desse processo de reencontrá-la na minha melhor versão possível.

 

E, com isso, encontrar a mim mesmo.

 

Se um dia isso vai acontecer, eu não sei.

 

É possível que não.

 

Mas lamento um pouco menos.

 

E amo um pouco mais.

 

Conselho de Sêneca a Mecêceu.

 

Estoico.

 

O sentimento do outro eu não controlo.

 

Mas controlo os meus.

 

Enquanto isso, permanecemos alheios. Uns dos outros. E de nós mesmos.

 


 

DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo)
Enviado por DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo) em 01/05/2025
Alterado em 02/05/2025
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