× Capa Textos Áudios Fotos Perfil Livro de Visitas Contato
DAVE LE DAVE
SIM, ELE MESMO
Textos

UM DIÁLOGO INTELIGENTE NO TREM DE SP

 

 

Entre trilhos e ideias

Esse diálogo é real. Se desenrolou durante o trajeto de trem entre minha casa e o estádio do Palmeiras, entre mim e meu irmão. Em trinta minutos, no máximo, de percurso — como se tivesse sido escrito por Tarantino, Woody Allen ou num daqueles filmes lentos e geniais de Jim Jarmusch.

 

Ao encontrarmos pessoas fantasiadas de fãs de música — posers do Lollapalooza — comentei com ele minha ideia: não gostaria de ver as bandas que gostamos em grandes palcos. Elas não combinam com isso. Preferiria ver um ensaio. A crueza, o íntimo, o bastidor.

 

Meu irmão, interlocutor sempre inteligente, pontuou que uma vez foi a um show da Plebe Rude e assistiu ao ensaio antes da apresentação. Ele entendeu o que eu quis dizer.

 

Discotecagens e o valor da pista

Continuei dizendo que, hoje em dia, preferiria ver DJs discotecando em festas pequenas, mais próximas do público: Vitalic, MSTRKRFT, Digitalism, Simian Mobile Disco, Justice, Daft Punk…

 

Ele rebateu com propriedade: hoje é impossível ver um show intimista do Daft Punk — eles transcenderam a cena indie, como mostra o filme Eden (2014), que narra justamente esse movimento eletrônico francês. Lembrou que o duo francês, inclusive, compôs a trilha sonora de Tron: Legacy (2010), com aquela sonoridade futurista que ficou marcada na estética do filme.

 

Lembranças que cabem num ingresso

Com certo saudosismo, ele refletiu que deveria ter guardado todos os ingressos dos shows que já foi, nacionais e internacionais. Já viu as principais bandas ao vivo: Oasis, Strokes, Libertines, New Order, Franz Ferdinand, Arcade Fire, entre muitos outros.

 

Se ressente por nunca ter visto Gorillaz, Blur e Depeche Mode ao vivo. Lembrou do show que o Depeche Mode fez no Olímpia, que hoje é uma igreja Bola de Neve, para no máximo 30 mil pessoas — justamente a turnê do DVD que temos. A filmagem e o design gráfico foram feitos por Anton Corbijn.

 

Cinefilia e memória cruzada

Nessa hora, eu disse que Corbijn também dirigiu o filme-documentário sobre o vocalista do Joy Division, Ian Curtis — Control (2007). Era o último filme estrelado por Philip Seymour Hoffman, cujo nome eu não conseguia lembrar na hora. Mas foi meu irmão quem rememorou — mesmo não sendo grande fã de cinema.

 

Corbijn também dirigiu o filme biográfico de James Dean que eu, cinéfilo, não lembrava o nome. Tentei puxar da memória: “Aquele que fez Juventude Transviada, ícone dos anos 50, junto com Marlon Brando…” Ele logo disse: “James Dean”, mesmo sem nunca ter visto um filme. Isso é coisa de gente bem informada, com bom conhecimento geral. Um jornalista nato, curioso. Domina o que gosta — futebol, música — e só não sabe mais por falta de tempo ou interesse.

 

O entrevistador que habita o cotidiano

Minha memória falhou. Eu, o cinéfilo, culto, erudito. Ele, o bem informado. E pensei nos entrevistadores de podcasts que vejo por aí. Muitos não sabem extrair nada dos convidados. Um nível de ignorância que assusta. Qualquer um acha que pode ter um canal no YouTube e fazer entrevistas.

 

Mas quando se assiste a uma conversa conduzida por alguém de intelecto — André Barcinski, Reinaldo Azevedo, Jô Soares — a diferença é gritante. Meu irmão até disse que eu, atendendo o público, pareço o Jô: falo e discorro sobre vários assuntos com os pacientes, como se fosse o host de um talk show.

 

Quando o interlocutor é inteligente, o assunto nunca é fofoca ou proselitismo. É sempre conteúdo. E quando meu irmão vem aqui, conversamos por horas a fio. Cultura, política, música, cinema. Nunca falamos da vida dos outros — a não ser dos outros que valem a pena ser estudados. Nunca ouvi meu irmão falar do trabalho, a não ser em casos muito curiosos que envolvem nossos gostos. Nunca o vi falar da vida alheia.

 

A ética herdada do silêncio

E assim cresci com essa ética: ser reservado (embora este texto funcione como um diário terapêutico), e nunca falar dos outros. Só de mim. E de cultura. Isso é um diálogo inteligente.

 

Nos empolgamos. Falamos alto como italianos. Mas não é a fofoca que se escuta no transporte público, nem o barulho de gente sem noção falando no celular. São diálogos interessantes. Que versam sobre diferentes assuntos. E que nascem — como os melhores filmes — dos vagões lotados e do improviso real.

 

 

DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo)
Enviado por DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo) em 05/04/2025
Alterado em 05/04/2025
Comentários