Essa fila está maior do que a de transplante de coração no SUS. No caso, querem o coração deste humilde escriba, que, por mais singelo que possa parecer, é alvo de tentativas de depreciação tanto física quanto intelectual. Dizem: “negro de bigode”, “Cortelinha”, “de la pança, grávido de cinco meses”. Ao que eu respondo: recalque!
Na trilha onde piso, deixo corações defenestrados e dilacerados. A pessoa que amo tem a grande sorte de ser correspondida com amor verdadeiro, porque, se há algo inegável, é a dedicação: anos e anos de um blog dedicado a mim.
Mas e se outras garotas como ela também tivessem blogs sobre mim? (Ah, e como esse perfil de garotas costuma se encantar por mim…) Mal sei seus nomes, muito menos lembro de seus rostos. Imagine se acontecesse o mesmo com ela, a quem procuro todos os dias.
Na última tentativa, foi frustrante. Pedi a uma amiga para procurá-la no Instagram. Para minha decepção, a boa vontade dela foi igual à de quem chega ao banco faltando cinco minutos para fechar.
Mas não creio que tenha sido por má vontade, e sim porque talvez ela também tenha retirado sua senha e esteja aguardando. E faz de tudo para tirar as pessoas da frente dela. Inclusive, pergunta quem era aquela outra pessoa que eu seguia e que, misteriosamente, deixou de me seguir e interagir comigo.
Talvez tenha ficado feliz. Mas nada mudou.
Ok, ela é uma grande amiga, mas mexi meus pauzinhos e, em menos de um minuto, consegui a informação que precisava. Estava na cara.
Então, a pessoa que amo… nem sei se está aqui, se me lê. Talvez esteja decepcionada. Ou me ame tanto que se permita odiar um pouco pelas ofensas que fiz a pessoas caras a ela.
Mas se há algo que tenho é a virtude da sinceridade. E, se ela me lê, amor, vai negar que meu comentário e os seguintes não foram os melhores que já passaram por ali? Que eu era uma luz no deserto, algo totalmente dissonante?
Tenho muita força de vontade. Chamei a pessoa que amo de Vênus de Milo de roxo, seu rosto angelical, embora um pouco rechonchudo.
Mas o amor não vê imperfeições. Ainda assim, o meu bloqueio veio como se eu a tivesse chamado de Vênus de Willendorf por estar mais cheinha.
E, olha, minha boa vontade é real: não falo uma coisa e vivo outra. Meu pensamento é coerente com minha vida. Minhas palavras refletem meu modo de viver.
Minha página no Recanto dos Letras é a materialidade do meu pensamento, a prova concreta de tudo. Está tudo lá, nos meus arquivos de imagem, mostrando que o que digo não só é verdade, como é verdadeiro.
E, se sou capaz de dizer tudo isso, é porque, de fato, passei quase uma década isolado da sociedade, vivendo em uma bolha.
Roberto Machado estudou com Foucault e chegou a visitar sua casa. Pela proximidade, desconfio que os dois fossem gays e que Foucault estivesse interessado em seu pupilo brasileiro com intenções pederastas—uma troca que Pausânias defende em O Banquete de Platão. Não é à toa que o nome dele começa com PAU.
Nessas visitas, Roberto perguntou se Foucault não se sentia triste sozinho, ele que era um rato de biblioteca, lia livros num dia só, cercado por aquela imensidão de papéis empoeirados.
E, no seu jeito francês truculento, Foucault respondeu: “Numm, de jeito nenhum.”
E é como Foucault que eu andei esse tempo: absorto em minhas leituras e estudos, com a mesma fixação de José Arcadio Buendía se entregando às suas obsessões em Cem Anos de Solidão.
Vivi assim durante anos. E só por isso, hoje, sou capaz de escrever tanto—na quantidade e no conteúdo que consigo—e, ao mesmo tempo, me permitir ler menos e cuidar do corpo. O que, aliás, virou uma das minhas novas obsessões.
Acordo às seis da manhã, tomo banho, café, e às 7h30 já estou na academia.
Fico até as 10h30 (ou mais) e, enquanto faço esteira ou bike, ou nos intervalos, escrevo e respondo e-mails. Chego em casa, escrevo enquanto descanso, tomo banho, faço meus registros de look, vou para o trabalho.
Se está calmo, escrevo no trabalho. Chego em casa, janto e escrevo. Às 20h30, já estou na cama tomando minha medicação e, às vezes, às 21h30 já dormi para reiniciar minha rotina no dia seguinte.
No fim de semana, quando a academia é inacessível, treino em casa: faço HIIT, exercícios de alta intensidade, abdominais, pego os halteres. Sábado e domingo. Ou seja: treino todos os dias.
O resultado? Meu índice de gordura corporal caiu de 22% para menos de 10%. Quase não dá mais para pegar as dobras com a mão. Agora, só falta definir o abdômen.
Estou tomando bebida zero, café com adoçante, chocolate com menos açúcar. Sim, ainda como muita besteira, mas meu metabolismo é rápido e gasto mais calorias do que consumo.
E quando critico homens desleixados, com aparência negligente, não sou hipócrita. Tenho autoridade para falar.
Cuido de mim. Me depilo. Assumo que tenho um cheiro viril, mas uso desodorante para virilha e partes íntimas para não soar e controlar o odor corporal. Passo talco para evitar assaduras.
Aparo os pelos dos braços, das axilas, os sobressalentes. E, mesmo não conseguindo o ângulo ideal, mantenho a barba reta e bem aparada.
Se meu cabeleireiro não cobrasse quase 50 reais, iria a cada 10 dias, não 20. Só ele faz o degradê do jeito que eu gosto. Se alguém vier dizer que eu pago 50 conto para o cara só passar a máquina, eu dou um tapão.
E então eu penso: com toda essa minha força de vontade com minha aparência, corpo e mente, eu vou me contentar com qualquer coisa na minha parceira?
Vou distribuir senhas como se fosse o SUS?
Se eu consigo me vestir bem, não é porque só agora comecei a comprar roupa para os looks do Dave Le Dave.
Meu guarda-roupa é composto por peças conservadas de anos de trabalho. Meu corpo não muda, então continuo usando. Só perdi calças porque, bom, não tem jeito, né.
E não, eu não doo roupas. Sinto muito. Sou muito apegado a elas.
Doo Os Irmãos Karamázov, mas não doo minhas roupas para alguém que não saberá combiná-las direito e terá mal gosto. Para mim, isso é inadmissível.
Nunca esqueço da vez que mandei um alfaiate adaptar uma camisa Sergio K.. Era grande, linda, xadrez. Mas logo ficou pequena.
Minha mãe doou para um garoto de 10 anos que nem sabia o que tinha nas mãos, o arrombado. Desde então, não deixo mais ela doar nada. Amarela, mofa, mas eu não dou. Não vou deixar alguém atentar a moda com minhas roupas!
Eu participo do velório, mas não ajudo a carregar o caixão.
E então, com toda essa minha preocupação, eu vou me contentar com pouco no mercado afetivo? Qual é o meu valor?
Por que a pessoa que amo quer me diminuir se, com todo respeito, ela não demonstra essa mesma força de vontade?
Talvez seja por isso que, com esse novo bloqueio, eu reagi com indiferença estoica.
Sorri, continuei meu treino na academia e mandei minha secretária chamar a próxima da fila.