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DAVE LE DAVE
SIM, ELE MESMO
Textos

DO CINEMA AO RECANTO DAS LETRAS

Ainda embriagado pelo clima de estupor do lança-perfume literário e do efeito anestésico e delirante do ópio que foi o Oscar, porém sóbrio e careta, como pede o protocolo do adicto em recuperação, resolvi fazer a parte dois do meu texto: Diretamente DO CINEMA para o RECANTO DAS LETRAS, porque muito assunto ficou de fora.

 

Deem espaço na pista de dança literária do Recanto pra mim, que ainda não estou cansado e tenho um ou dois passos na minha manga para exibir.

 

O CINEMA QUE INOVA

Falando em técnicas de cinema, eu queria comentar sobre filmes cujas abordagens mais me impressionaram pela inovação nos últimos anos. Quem são os melhores cineastas e quem soube extrair as melhores atuações?

 

E, em todos esses quesitos, se destaca o diretor germano-austríaco Michael Haneke. Talvez seu filme de maior projeção tenha sido Funny Games, uma espécie de jogos mortais, em que ele subverte as expectativas do público de uma forma devastadora. No entanto, meus filmes preferidos dele são Caché e Amour, ganhadores da palma de ouro. Ambos são exemplos de uma direção magnífica, que poderia ser descrita como a de um Gaspar Noé mais sofisticado e da alta-costura – sempre impecavelmente vestido, com mais erudição e, claro, um olhar mais refinado sobre a sociedade.

 

MICHAEL HANEKE E A PRECISÃO CIRÚRGICA

Em Caché, a cena em que Haneke utiliza planos abertos e estáticos para mostrar a câmera de vigilância é um dos maiores feitos do cinema contemporâneo. O filme se desenrola praticamente todo sob o ponto de vista subjetivo dessa câmera, uma simples filmagem de segurança que, paradoxalmente, conta toda a história do filme. E a cena apoteótica em que um personagem corta o pescoço com uma lâmina de barbear… Há relatos de espectadores que passaram mal.

 

Em Fita Branca, Haneke conta a história de uma vila alemã antes da iminente Primeira Guerra Mundial, explorando a banalidade do mal que se esconde no estilo passivo-agressivo e na violência objetiva que gera a subjetiva, e como as crianças internalizam a violência por influência da sociedade. Eu assisti no cinema e lembro que os espectadores comentavam que haviam visto um filme de terror.

 

A tensão constante, a opressão no ambiente e a forma como Haneke trabalha a construção de personagens cria uma atmosfera de puro desconforto, sem recorrer a sustos fáceis.

 

Por outro lado, Amour é um filme calmo e contemplativo, em que Haneke extrai atuações majestosas do casal de idosos tentando sobreviver juntos, enfrentando a iminente morte. Que história bonita e delicada, que mostra como, no cinema, às vezes não é necessário muito para emocionar. Bastam uma boa mise en scène, ótimos atores e, claro, a sensibilidade do diretor para capturar a essência do drama humano.

 

Em seu filme Happy End, que é incrível, Haneke analisa a alienação da geração atual, mais interessada em fazer vídeos para o Instagram, onde a tragédia vira conteúdo. Ele mistura imagens filmadas com celular e câmeras profissionais para mostrar como os aparatos modernos poderiam ser usados para grandes produções cinematográficas, caso não houvesse a artificialidade e a limitação dos indivíduos que os manuseiam. É uma crítica afiada à sociedade contemporânea e ao vazio das redes sociais.

 

O IMPÉRIO MEXICANO NO CINEMA

Dos grandes diretores da atualidade, Alejandro González Iñárritu, mexicano, se destaca pela técnica, fazendo filmes grandiosos e pequenos. Ganhou o Oscar por O Regresso (The Revenant, 2015), que, embora fraco em narrativa, tem vários planos-sequência maravilhosos, e por Birdman (2014), um filme que simula um único plano-sequência para criar uma atmosfera teatral.


Iñárritu começou sua carreira com a chamada “trilogia da morte”: Amores Brutos (2000), 21 Gramas(2003) e Babel (2006), filmes que compartilham a estrutura narrativa fragmentada e personagens interligados por tragédias. Ou seja, ele é um diretor de estilo amplo, criativo e tecnicamente ousado.

 

 

No entanto, Gravidade (Gravity, 2013) e Roma (2018), vencedores do Oscar, não são dele — são de Alfonso Cuarón, outro grande cineasta mexicano. O Brasil está em festa por finalmente conquistar seu Oscar de Melhor Filme Internacional – uma categoria secundária em comparação ao prêmio principal. Enquanto isso, o México, um país emergente e subdesenvolvido como o Brasil, já domina a arte cinematográfica há anos. Talvez pela proximidade com Los Angeles, a terra do cinema, seus diretores conseguem se destacar mundialmente, acumulando estatuetas e influência.

 

A ARGENTINA NÃO FICA ATRÁS

E nossos hermanos na Argentina? Fazem um cinema muito melhor que o nosso, com narrativas sofisticadas e produções que conquistaram reconhecimento internacional.

 

O Segredo dos Seus Olhos (El Secreto de Sus Ojos, 2009), de Juan José Campanella, e Relatos Selvagens (Relatos Salvajes, 2014), de Damián Szifron, são exemplos de filmes impactantes, conquistadores da estatueta maior de hollywood, sem paralelos no Brasil.

 

PEDRO ALMODÓVAR: O TEATRO NO CINEMA

Pedro Almodóvar trouxe o teatro para o cinema, e seu estilo, com uma paleta de cores vibrante e exagerada, é inconfundível. Um filme de Almodóvar parece um pênis latejando de tão duro – imagem que, por ser homossexual assumido, ele adoraria saber!

 

Tive a sorte de frequentar a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo quando ele foi homenageado, com um cartaz feito por ele próprio. A mostra exibiu toda a filmografia dele, desde os filmes B de baixo orçamento até suas produções consagradas, estreladas por Penélope Cruz e Antonio Banderas.

 

No início, seu cinema era meio trash, mas já carregava sua marca: cores fortes, pulsantes – o rubro, o vermelho, a cor do pecado. Tudo chegay mesmo! Ele falava de travestis alegres, do submundo de Madri, de drogas e promiscuidade. Muito legal mesmo.

 

CINEMA B, CAFÉ E CIGARROS

Aliás, o cinema B tem seu espaço. Nunca vi uma atuação feminina mais impactante do que a que John Cassavetes extraiu de sua esposa, Gena Rowlands, em Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under the Influence, 1974). Incrível.

 

E os filmes de Jim Jarmusch, que eu gosto tanto pela simplicidade e pelo baixo orçamento?

 

Café e Cigarros (Coffee and Cigarettes, 2003) é uma série de diálogos entre cantores e atores existencialistas sobre arte, música e vida. Entre os convidados estão Jack e Meg White, do The White Stripes, Iggy Pop, Tom Waits, Cate Blanchett e até o comediante Roberto Benigni, de A Vida é Bela (La Vita è Bella, 1997).

 

Além disso, Jarmusch fez filmes de comédia excêntricos, como Daunbailó (Down by Law, 1986), e seu último filme que vi no cinema foi Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive, 2013), sobre vampiros intelectuais e decadentes.

 

A OBRA-PRIMA QUE VOCÊ PRECISA VER

E o filme mais impressionante que vi, tanto no cinema quanto em casa – e que, quem tiver a oportunidade, precisa assistir – é O Pequeno Quinquin (P’tit Quinquin, 2014), de Bruno Dumont.

 

É um thriller policial protagonizado por Quinquin, um jovem weirdo de aparência peculiar, com um septo nasal torto. Todos os personagens são bizarros e fora do convencional, desde o chefe de polícia até o principal suspeito, um homem com deficiência intelectual. O filme, além de jogar nossos preconceitos na cara, é leve e divertido, mas também incomoda.

 

Uma obra-prima. Dura três horas porque, inicialmente, foi pensado como uma minissérie para a televisão estatal da França. Pena que nossos streamings são muito fracos. Já vi duas vezes – uma no cinema e outra em um streaming mais seleto – e adoraria ver de novo.

 

Procurem O Pequeno Quinquin, prometo que vale as três horas de filme.

 

DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo)
Enviado por DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo) em 04/03/2025
Alterado em 04/03/2025
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