No futebol, analisando lances em câmera lenta, até um beijo de vó pode parecer agressão. Não é a mesma coisa ver um lance no VAR e assistir à jogada no calor do momento, em tempo real.
E você? Escreve com a bola rolando ou só no replay em câmera lenta?
Duas frases de Nietzsche para ilustrar: “Os homens não são iguais, assim fala toda a justiça, e o que eu quero, não podem eles querer.” E outra: “Sinto que não sou reconhecido, o que é uma pena, pois não deixei de dar mostras de quem sou.”
Na teoria dos afetos de Deleuze, em Anti-Édipo, a identificação com pessoas não ocorre apenas pelo reconhecimento consciente, mas sim pela forma como certos nomes da história se tornam zonas de intensidade sobre o chamado “corpo sem órgãos”. A cada encontro, algo em nós grita: “Sou eu! Então sou eu!”.
Ou seja, certos encontros do nosso corpo com o mundo provocam estados intensivos de energia, que podem nos expandir ou nos retrair. Por isso buscamos algumas pessoas por afinidade e evitamos outras instintivamente—como quem repele ratos, baratas ou qualquer coisa que possa nos fazer mal.
Alguns autores compõem bem com nosso corpo. Nietzsche sabia disso, por isso exaltava os “altos ares” que encontrava na poesia de Goethe, nos latinos e nos gregos—Homero, Horácio. Eu sinto o mesmo quando leio Ovídio. “Então sou eu!”
Agora, outros escritores nosso organismo simplesmente repele, como se fossem dejetos que não podem ser digeridos pelo nosso estômago sensível. Autores de estilo rocambolesco, megalômanos, místicos, que enfeitam a escrita em demasia sem dizer nada. Ignoram a máxima de que “a simplicidade é o último grau de sofisticação”.
Talvez seja por isso que precisam de tantas personas para se identificar—porque já não sabem mais quem são. Não enxergam a própria face diante do espelho, a não ser através de máscaras carnavalescas e burlescas.
Prefiro trabalhar com a ideia de agenciamentos de Deleuze. Por exemplo, um autor com quem gosto de estabelecer agenciamentos é Godard. Me vejo nele, me identifico com sua obra.
Acho que os fãs de Godard vão concordar comigo: seu melhor filme é O Demônio das Onze Horas. E o modo como, nesse filme, ele cria seus próprios agenciamentos dentro de uma única arte—misturando cinema com pintura, literatura, trechos de musicais, dança, poesia em movimento e imagens de puro lirismo—mostra como Godard escrevia com a câmera.
Ele inventou o pensamento cinematográfico, segundo Deleuze. E ao escrever um texto, tento fazer o mesmo: dar conteúdo, juntar tudo que sei para formar um quadro bonito, mas com coerência e simplicidade, sem me perder no ridículo.
Trabalho com citações de poesias, trechos de livros, ideias filosóficas, músicas—como se estivesse compondo um filme escrito, um pensamento-texto. Para não ser só um emaranhado de palavras vazias, sem conteúdo.
As palavras são ocupadas, têm muito o que fazer; elas não gostam de ser usadas inutilmente, sem propósito e objeto. Através da arte, tento dar esse sentido às palavras, sem rebuscamento excessivo ou aquele tom acadêmico preso a citações e regras da ABNT, que tiram a leveza do texto. Tudo tem que ser orgânico.
Velozes e Furiosos e Godard pertencem ao cinema. Mas há quem prefira e se sinta mais acolhido assistindo a Velozes e Furiosos.
Embora eu reconheça o mérito do PRIMEIRO filme, ainda prefiro compor meu corpo e fazer agenciamentos com Godard. É uma questão de gosto. Mas há quem prefira Velozes e Furiosos. “Então sou eu.”