Como aqueles primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos, assim te levo comigo, ó sono! Mas eu queria trocá-lo, e andaria por aí com uma placa anunciando ‘compro e vendo criatividade’, um ourives do sono, que o troca por mais engenho
Invejo aqueles que acordam organicamente às seis ou antes, guiados pelo próprio relógio biológico, já dispostos, levantando de imediato da cama, dando “bom dia” para todos, tomando banho e café. Como minha mãe, que logo de manhã já acorda cuspindo abelha africana pela boca. Eu pelo contrário, como Bezzi, da musica do Cansei de Ser Sexy, de manhã, eu desperto, com uma nuvem negra em cima.
Eu sou uma figura da madrugada, um notívago. É à noite que a inspiração e a criatividade me vêm, talvez influenciado pelo desaparecimento do sol e pela aparição da lua. Na calada da noite e no crepúsculo do dia, sinto-me mais disposto. E de madrugada, atinjo meu auge—nessas horas, todo mundo é poeta, porque os objetos perdem sua forma.
“Viver de noite.
Me fez senhor do fogo.
A vocês, eu deixo o sono.
O sonho, não.
Esse, eu mesmo carrego” - Paulo Leminski
Para mim, acordar de manhã é um grande sacrifício e algo completamente antiorgânico. Acordo de mau humor, evito movimentos bruscos e tento economizar energia. Ainda assim, contrariando minha natureza e meu corpo, levanto, mesmo sem necessidade, para treinar.
Esse período é delicado para mim. Antes, no auge da minha adicção, eu passava por cima de tudo isso e usava um doping matinal para despertar: cheirava uma carreira logo cedo, como quem joga água no rosto para acordar. É nesse horário que mais sinto falta do pó no nariz. Mas hoje me contento em tomar um banho morno, café preto, minha creatina e ir para o treino, às vezes antes das sete.
Hoje, a academia, por conta do carnaval, só abrirá depois das oito. Para evitar a multidão—que, devido ao meu aborrecimento matinal, reduz minha capacidade de agir—, vou mais tarde.
Volto à minha dileta função na prefeitura só na quinta-feira. E, na realidade, nem precisaria acordar tão cedo, já que só chego ao trabalho por volta das duas da tarde e, às vezes, antes das 18h30 já estou saindo. Não sou lá muito bem remunerado, mas também nada me falta. E, sobretudo, meu salário já não vai parar, quase que 90%, nas mãos de traficantes.
Tenho qualidade de vida atualmente. Mas, mais importante do que essa fórmula banal e repetitiva de “qualidade de vida” é ter uma vida de qualidade.
Vamos analisar gramatical e conceitualmente cada uma dessas expressões, como se você estivesse assistindo ao tele curso 2000.
Qualidade de vida é um conceito amplo e uma fórmula que se aplica a todos. Refere-se ao bem-estar geral de uma pessoa ou grupo, mas ignora a singularidade de cada indivíduo. É um termo padronizado, frequentemente utilizado em políticas públicas e estudos sociais, que mede fatores como saúde, segurança, lazer e acesso a bens e serviços.
Do ponto de vista gramatical, “qualidade” é um substantivo abstrato, pois não pode ser percebido pelos sentidos.
• “De vida” funciona como um complemento nominal, especificando de que tipo de qualidade se trata.
• Aqui, “vida” não é quem possui a qualidade, mas sim aquilo sobre o qual a qualidade recai.
Agora, vida de qualidade tem um significado diferente. Refere-se a uma existência que cada indivíduo molda conforme seus próprios valores e desejos. Não é uma fórmula universal, mas sim um conceito subjetivo e particular: o que é uma vida de qualidade para um pode não ser para outro.
• “Vida” aqui é um substantivo concreto, pois se refere a algo real, perceptível pelos sentidos. Não pertence ao mundo das ideias platônicas, mas à realidade material.
• “De qualidade” funciona como um adjunto adnominal, qualificando diretamente o substantivo “vida” e atribuindo-lhe uma característica.
A diferença essencial entre os dois termos está na subjetividade: “qualidade de vida” busca critérios objetivos e mensuráveis, enquanto “vida de qualidade” enfatiza uma experiência individual e intransferível.
A diferença entre complemento nominal e adjunto adnominal segue essa mesma lógica. Ambos servem para completar o sentido de um nome (geralmente um substantivo), mas há um critério fundamental:
• O complemento nominal se liga a um substantivo abstrato, algo que pertence ao campo das ideias e não pode ser tocado.
• O adjunto adnominal modifica um substantivo concreto, algo perceptível pelos sentidos.
Podemos entender isso com um exemplo simples:
• “Bolo” é um substantivo concreto.
• “De chocolate” funciona como um adjunto adnominal, pois caracteriza o bolo, indicando do que ele é feito.
Agora, se falamos em qualidade de bolo de chocolate, temos outra estrutura:
• “Qualidade” é um substantivo abstrato, pois não se pode tocá-la.
• “De bolo de chocolate” é um complemento nominal, pois especifica de que tipo de qualidade estamos falando.
O mesmo vale para “amor de mãe”:
• “Amor” é um substantivo abstrato.
• “De mãe” funciona como um complemento nominal, pois indica quem sente o amor. Mãe não é uma característica do amor, mas sim o sujeito que o experimenta.
Agora, pense na diferença entre um bolo de chocolate e a qualidade de um bolo de chocolate. Um é algo real, que podemos comer. O outro é um conceito, uma avaliação subjetiva sobre aquele bolo.
A ontologia (o estudo do ser) trata dessas distinções. Enquanto o complemento nominal está no campo da essência (o que algo é em sua ideia), na Onticidade do Ser; o adjunto adnominal, por outro lado, pertence ao mundo dos entes, ontico, ou seja, das coisas concretas que percebemos.
Se quiser se aprofundar mais, recomendo meu texto O Prazer que Só a Língua Pode Dar, clicando no link, onde exploro essas questões metafísicas da linguagem. Que pela qualidade excelente, deve ter sido escrito depois das 18 horas.