A ideia de que a escrita é um dom inato, algo concedido de maneira espontânea a algumas pessoas e negado a outras, ignora a natureza do talento como resultado do exercício contínuo e do aprimoramento constante. Se tomarmos a perspectiva aristotélica, podemos recorrer ao conceito de dýnamis e virtù.
Em Ética a Nicômaco, Aristóteles diferencia dýnamis (potencialidade) de enérgeia (atualização dessa potencialidade). Isso significa que, mesmo que alguém tenha certa inclinação natural para algo, é apenas por meio da prática consistente que essa aptidão se torna uma habilidade real. Em outras palavras, o talento não é um presente estático, mas algo que se desenvolve através da ação disciplinada. Escrever é potência em ato!
Maquiavel, em O Príncipe, ao discutir a virtù, reforça essa ideia ao argumentar que não basta ter sorte (fortuna); o verdadeiro poder e sucesso vêm da habilidade de agir de forma estratégica e determinada. Ou seja, mesmo que alguém tenha predisposição para a escrita, sem esforço e disciplina, esse “dom” permanece estéril.
A própria parábola dos talentos, contada por Jesus, ilustra esse ponto. No relato bíblico, os servos que multiplicam os talentos que receberam são recompensados, enquanto aquele que enterra o talento, por medo ou inércia, é repreendido. Isso demonstra que o talento não é algo fixo ou imutável, mas sim um recurso que precisa ser cultivado. Aplicando essa lógica à escrita, o que define um bom escritor não é um dom misterioso e imutável, mas sim a dedicação constante para aprimorar suas habilidades.
No meu caso, por exemplo, não acredito ter nascido com o “dom” de escrever. O que eu tenho, sem dúvida, é um gosto intenso e uma compulsão pela escrita, mas minha habilidade foi construída ao longo dos anos, através da prática incessante. Se compararmos meus textos de alguns anos atrás com os de hoje, a evolução é evidente — e minha versão de cinco anos no futuro certamente será melhor do que a atual.
Isso se reflete até mesmo quando sou questionado sobre minhas qualidades em entrevistas de emprego. Minhas respostas são sempre as mesmas: facilidade de aprendizado, desejo de evolução constante e criatividade. Esses três aspectos, aplicados à escrita, explicam muito mais o meu progresso do que qualquer ideia de “dom”. O talento não é um presente mágico: é o resultado de um esforço contínuo, de um compromisso com a melhoria e de uma prática consistente ao longo do tempo. Da aqui 3 anos, passem aqui, que eu serei alguém muito melhor.
Na minha primeira entrevista de emprego, fui criticado por não saber escrever corretamente o nome do bairro onde moro, Jaraguá. Não sabia que a palavra levava acento no final, que se tratava de uma oxítona. Mas, em vez de me conformar ou me sentir derrotado, tive brio. Decidi que iria aprender. Comecei a ler — primeiro revistas Superinteressante, para ter mais conteúdo, depois livros infantojuvenis, livros didáticos de português e obras de história.
Tinha um caderninho onde anotava todas as palavras que não conhecia e, ao lado, registrava seus significados após consultá-los no dicionário. À noite, estudava cada uma delas, decorava-as, expandia meu vocabulário. Mais tarde, descobri o cinema e, por meio dele, me interessei por literatura, filosofia e outros campos do saber. Meu gosto foi se sofisticando. Passei horas e mais horas lendo livros, assistindo a aulas online, ouvindo palestras de professores consagrados, explorando cânones filosóficos, mergulhando nos grandes clássicos da literatura e do cinema.
Não me limitei a ver filmes soltos: estudei filmografias completas, percorri períodos históricos do cinema, do mudo ao clássico americano, dos westerns de John Ford ao impressionismo alemão, do neorrealismo italiano à Nouvelle Vague, do Cinema Novo ao movimento da Nova Hollywood, do cinema soviético ao sueco, do cinema independente às grandes produções. Li livros técnicos, histórias do cinema, análises críticas. Tudo isso exigiu esforço, aprendizado, suor. Minhas opiniões vêm do conhecimento, não da inveja ou do ressentimento.
E, no entanto, vejo hoje pessoas que assistem a um vídeo de três minutos no YouTube e já se consideram especialistas. Querem ostentar a cosmética do saber, mas o que possuem é apenas uma casca vazia, um invólucro sem substância. E, às vezes, acabo me exaltando ao debater com esse tipo de gente. Mas para quê? Meu conteúdo está disponível, meus artigos culturais no Recanto das Letras estão lá para quem quiser ver.
E os meus críticos? Produzem o quê? Imagens e textos que mais caberiam no Instagram. Pensamentos com a profundidade de um fotograma!
Não, “dom” é uma ideia mística, esotérica. Se há algo de místico ou divino em mim, não é uma habilidade inata, mas sim o bom gosto — para pessoas, para arte, para cultura, para música, para o belo em geral. E é com essa régua que eu meço o que tem valor e o que merece ser transmitido adiante.
A fé que eu tenho é em mim mesmo, nesta realidade, nas coisas que posso transformar com minha força de vontade e meu esforço. No dolce far niente do ócio criativo, que se converte em conteúdo. Minha espiritualidade é laica; não acredito em mundos supraterrenos ou em pregadores da morte. Esses, cansados do peso da existência, anseiam por partir — que partam, então. Eu, ao contrário, sou um profeta da terra, da realidade, desta única existência que é concreta e comprovada.
Não há nada de errado em pensar através das ideias dos outros quando ainda não se tem força para pensar por si mesmo. Mas algumas pessoas são apenas poços vazios, latifúndios de terras inférteis — nem talentosos, nem criativos, nem nada. Têm apenas fé em Deus e, talvez, no paraíso que promete igualar a todos. Quem sabe lá encontrarão seu descanso eterno. Mas um lugar onde todos são iguais me parece entediante. E o inferno, por sua vez, é quente demais.
Prefiro ficar aqui na terra. Enquanto estiver vivo, lutarei para que este mundo seja um lugar melhor — para mim, para aqueles que amo e para os filhos que ainda virão.