Hoje, ao almoçar com minha família em uma bela cantina italiana, novamente éramos as únicas pessoas mais escurinhas. Eu digo que o racismo subjetivo nunca senti na pele, mas o racismo objetivo, estrutural, que legitima essa situação – o fato de não haver negros em um restaurante lotado num domingo – esse é cotidiano e faz parte da violência sistêmica enraizada nas estruturas sociais, políticas e econômicas, como a desigualdade, a exploração e a opressão.
Meu irmão até brincou comigo: “Negro” (que é como nós nos referimos jocosamente, ironicamente e carinhosamente uns aos outros), “aqui só tem bolsonarista”. E de fato, olhando as mesas ao redor, além de sermos os únicos negros, éramos também os mais elegantes. Já os olhares da elite ao redor carregavam aquela opacidade típica da ignorância. Essas famílias felizes de Tolstói que são todas parecidas entre si, como no início de Anna Kariênina. E é irônico que o restaurante seja italiano, porque os imigrantes ítalo-brasileiros chegaram ao país justamente para substituir os negros abolidos nas fazendas.
E moda, saber vestir-se e pedir um prato no restaurante fazem parte da cultura também. E não se trata de vestir a melhor roupa para a ocasião enquanto os demais vão naturalmente porque faz parte do dia a dia, não! É porque eles têm mau gosto mesmo. O dinheiro não compra garbo, distinção, elegância, afinal.
Quem acompanha meus looks do dia sabe que hoje fui até bem normal em comparação com como me visto para trabalhar e atender pessoas mais humildes. Hoje fui simples, mas, mesmo assim, o mais distinto, tanto em porte quanto em elegância e comodidade. Um look de fato. Porque, se eu fosse só com uma camisa, oras, isso qualquer um faz, e fica meio inadequado com o shorts. Mas a camisa com camiseta dá um ar natural e despojado à bermuda.
Enquanto isso, meus pares negros estavam lotando a praça de alimentação dos shoppings populares, pedindo McDonald’s. Porque gastronomia, saber ir e saber o que pedir num restaurante são símbolos de cultura. Mas, como sofreram violência simbólica e objetiva, não se sentem confortáveis em um lugar mais sofisticado nem em sair da zona de conforto para pedir algo além da publicidade e do que conhecem — que é o McDonald’s —, ainda que haja opções melhores.
A sociedade molda seus corpos para agirem inconscientemente, copiarem os gostos e gestos de seus semelhantes e nunca saírem da sua bolha, perpetuando o status quo e a desigualdade social. De certa forma, meu capital cultural, minha elegância, me permitem circular por esses meios sociais e ser um camaleão: ser aceito, passar despercebido. Mas isso também é uma forma de violência simbólica.
Alguns negros, aos olhos dos brancos, se “embranquecem”, como a família Banks de Um Maluco no Pedaço, personificada na figura de Carlton Banks, ou como o pianista de Green Book, ou ainda como Machado de Assis, que, assim como eu, ironiza seus pares. Apesar de fazer parte dessa sociedade, nunca sou igual. Porque eu tenho consciência de classe. Ser contra a ignorância boçal representada pelo bolsonarismo e defender Lula mostra minha consciência de classe. Também mostra quem está comprometido em jogar dentro das regras do jogo e quem é um criminoso misantropo e marginal.
E aquelas famílias felizes do restaurante, alvas, incultas, para quem eu nem sou negro, mas “bronzeado”, nunca passarão. Sempre serão menores diante de mim, em sua ignorância de vida, visão de mundo, ideologia, cultura, intelecto e, claro, bom gosto.