Vermelho e o Negro, romance de Stendhal, narra a história de Julien Sorel, um jovem ambicioso e fisicamente atraente que utiliza dois tipos de capital para ascender socialmente: a sua beleza e o seu capital cultural, intelectual. Ele é contratado como preceptor da filha de Madame de Rênal e logo encanta não apenas a jovem, mas também a própria patroa, utilizando-se de seu charme, beleza e inteligência para seduzi-las. O capital cultural de Julien, embora não possua a sofisticação dos aristocratas da época, é marcado pela sua ambição, conhecimento e desejo de ascensão.
Esse uso de capital cultural e sexual como forma de ascensão social não é exclusivo de Vermelho e o Negro. Em A Nova Héloïse, de Jean-Jacques Rousseau, o protagonista, Saint-Preux, é um preceptor que também utiliza sua beleza e inteligência para seduzir Julie, a jovem que ele ensina, bem como sua mãe, a Senhora de Wolmar. Sua relação com Julie é marcada por um jogo de sedução intelectual e emocional, em que a beleza de Saint-Preux, unida ao seu capital cultural (seu conhecimento e sensibilidade), se tornam instrumentos poderosos no jogo de desejo e poder social. Saint-Preux e Julie compartilham uma conexão profunda, que vai além da simples atração física, mas também está enraizada nas tensões emocionais e culturais que definem as relações sociais da época.
Outros exemplos literários que abordam o uso de capital cultural e sexual podem ser encontrados em Madame Bovary, de Gustave Flaubert, onde a personagem Emma Bovary busca constantemente ascender socialmente, muitas vezes utilizando seu apelo sexual e uma erudição superficial como recursos para ser aceita nas camadas mais altas da sociedade.
Esses exemplos literários fazem parte de um longo processo de reflexão sobre as relações de poder, desejo e ascensão social que perpassam as diferentes camadas da sociedade, tornando evidente como o capital cultural pode, de fato, ser uma poderosa moeda de troca, muitas vezes entrelaçada com o capital sexual, no jogo de relações que regem o universo social. A beleza, o conhecimento e o desejo não são elementos isolados, mas sim ingredientes fundamentais na construção de uma ascensão social muitas vezes guiada pelo prazer, pelo poder e pelas dinâmicas de sedução.
O capital cultural não se confunde com o capital financeiro ou simbólico, como status ou diplomas, embora estes possam ser revestidos de capital cultural para adquiri-los. Em termos de investimento e dedicação, o capital cultural é, de fato, o mais difícil de acumular quando comparado aos outros dois. Enquanto o capital financeiro e simbólico muitas vezes são herdados, o capital cultural também pode ser transmitido de geração em geração, principalmente por meio de famílias que têm acesso a melhores escolas, que são responsáveis por transmitir esse tipo de conhecimento. No entanto, mesmo nesse contexto, ainda cabe ao indivíduo absorver e internalizar esse capital.
Além disso, é possível que alguém sem capital financeiro ou simbólico previamente acumulado consiga conquistar o capital cultural ao longo de sua vida. Pode acontecer, por exemplo, de uma pessoa com forte capital financeiro e simbólico, como um médico bem remunerado e doutor, ser inculta e carecer de um conhecimento mais abrangente. Em contraste, o capital cultural leva anos de estudo e dedicação para ser acumulado, mas ele pode ser transformado em símbolos, como diplomas, ou em retorno financeiro, como exemplificado em diversos casos na literatura.
Agora, vamos falar sobre o amor, os amores líquidos e o amor de rede social. No Recanto das Letras, percebo que há pouco desequilíbrio social; os escritores amadores, em sua maioria, são desprovidos de duas coisas: beleza e dinheiro. Embora alguns possam ter uma vida pacata de aposentados, ninguém ali é realmente rico. No entanto, a pessoa que amo vem de uma família tradicional, privilegiada desde o berço, criada como uma princesa, no seu pequeno condado vivendo no seu castelo de vidro. Pode-se dizer que, entre nós, no Recanto das Letras, ela é, para todos os efeitos, ryyyyca.
E como alguém com esse status se relacionaria com alguém como eu, que não compartilha dessas mesmas condições sociais? Afinal, em geral, pessoas de classes sociais diferentes tendem a se relacionar apenas com aqueles da mesma classe, perpetuando assim o acúmulo de capital. Curiosamente, nunca nos relacionamos seriamente por isso — pelo menos não de maneira tradicional. Contudo, o fato é que nos conhecemos por meio de um aplicativo de relacionamento, que tem o mérito de aproximar pessoas que, de outro modo, nunca se encontrariam, pois não fazem parte do mesmo universo.
Embora essa proximidade seja teórica, na prática, o que nos uniu foi nosso entendimento mútuo e o interesse comum, que se baseou, principalmente, no meu capital cultural. Conversávamos sobre poesia, literatura, cinema; temas que, embora não nos unam pela classe social, me alçam a uma certa elite intelectual. Na época, eu frequentava os melhores endereços de São Paulo e passava perto do curso onde ela estudava. O curioso é que, mesmo o algoritmo dos aplicativos de relacionamento, ao criar essas conexões, tende a separar as pessoas conforme a hierarquia social, uma divisão implícita, mas perceptível.
Dessa forma, meu capital cultural, de certo modo, acabou se transformando em capital sexual, erótico, ou até amoroso, como preferirem. O que começou como um interesse mútuo por ideias e cultura, evoluiu para algo mais profundo, provando que, no final, o que importa nem sempre é a classe social, mas o que se compartilha em termos de intelecto e afetos.