Em A Gaia Ciência, é conhecida a passagem do demônio que serve para avaliar se uma vida é boa ou condenada a se repetir:
“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse até ti em tua mais solitária solidão e dissesse: ‘Esta vida, tal como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, mas cada dor e cada prazer, cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência — e também esta aranha e este luar entre as árvores, e também este instante e eu mesmo. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez — e tu com ela, poeirinha da poeira!
Não te lançarias ao chão, rangendo os dentes e amaldiçoando o demônio que assim falasse? Ou vivenciaste um instante tremendo, em que lhe responderias: ‘Tu és um deus e jamais ouvi algo mais divino!’
Essa lógica do demônio impõe enorme responsabilidade sobre nossas ações e sobre os momentos que escolhemos viver e os que devemos deixar passar, pois estarão destinados a se repetir eternamente.
Por isso, transporto essa reflexão para a pergunta: é melhor transar todo dia, num eterno retorno, ou uma só vez, com alguém que valha a pena, com quem se ama de verdade?
Se levarmos a lógica do eterno retorno a sério, a resposta lógica é a segunda, pois a experiência intensa, ainda que única, se repetirá indefinidamente. Enquanto isso, o prazer vazio retornará da mesma forma, como no Dia da Marmota, em Feitiço do Tempo.
Aliás, no filme, o protagonista faz de tudo para transformar o tempo repetitivo em uma experiência única. Sabendo que está destinado a voltar sempre ao mesmo dia, ele deixa para trás a superficialidade e, em vez de transar todo dia com qualquer uma, como fazia no começo, resolve conquistar uma mulher que realmente valia a pena — sua colega de profissão, por quem acaba se apaixonando.
Recebi um meme uma vez. Um casal, vestindo a camisa do Corinthians em um jogo, postava a foto com a legenda: “O que o Corinthians une, ninguém separa”.
Ironicamente, outra foto mostrava Ana Hickmann com seu então marido — aquele mesmo, envolvido em escândalos de roubo, traições e agressões físicas. Os dois apareciam juntos na academia, com a legenda: “Casal que treina junto permanece junto”.
Bom… parece que não estavam treinando juntos o suficiente. No pain, no gain, como dizem os marombas.
De fato, vejo casais treinando juntos, unidos pela lógica do corpo, do físico, e nada mais. Espero que tenham mais sorte do que Ana e seu ex-marido.
Mas e quanto às palavras? E o que as letras unem, o destino não separa?
O que a literatura uniu, ninguém separa?
Casal que lê e escreve junto permanece junto?
Eu brinco ao me desvalorizar, em uma autodepreciação consciente, dizendo que sou só um negro de bigode.
Ora, nem negro, nem de bigode. Um moreno esbelto, com uma meia-barba à Caravaggio.
Nietzsche dizia que o que tem valor não precisa ser demonstrado. Meu valor também não.
No fundo, o que me destaca é o todo. Não sou necessariamente atlético, nem bonito, nem o mais inteligente. Mas há originalidade criativa e uma elegância de fato ímpar. Há aquela beleza que me é peculiar que vem do intelecto.
Se eu fosse um cineasta, talvez fosse como Godard, que nunca ganhou um Oscar de melhor filme por nenhum de seus longas isoladamente, mas recebeu um Oscar honorário pelo conjunto da obra.
Assim sou eu: belo pelo conjunto que me compõe.
O todo é valioso e constrói uma obra rara e singular.
Um Oscar da Academia.
Um prêmio honorário em reconhecimento.
Respondendo à pergunta:
Eu prefiro transar uma única vez com a pessoa que amo, a ter prazeres diários que esquecerei no dia seguinte.
A pessoa que amo permanecerá comigo após o orgasmo. Antes e depois. Já a trago comigo em pensamento.
E é essa ideia que me faz reconhecer seu valor.
O que nos uniu não foi apenas nossa aparência, nem nosso time do coração — que, aliás, é distinto. Não foi nossa classe social. Nem mesmo as letras e o corpo.
Foram nossas almas.
Foi o destino, indelevelmente escrito nas estrelas.
E por esse instante único de prazer, eu viveria e reviveria.
Pois, se esse momento de veleidade esotérica que Nietzsche se permitiu acrescentar à sua filosofia estiver correto, ele estará destinado a se repetir eternamente.