O quê? O David? O dito intelectual sofisticado irá analisar uma música pop da Katy Perry? Qual a pegadinha por trás disso? Onde está o anão com o extintor de incêndio, como nos quadros dos Trapalhões, para indicar que tudo não passa de uma brincadeira?
Lamento por aqueles que pensam assim, que veem na música um símbolo de intelectualismo pedante e não se permitem o prazer de simplesmente desfrutar de uma letra simples, mas que fala de um sentimento universal: o amor. O arrebatamento do enamoramento, o desejo e a experiência de um relacionamento com alguém mais velho, tudo isso embalado pela harmonia da canção. E, além do mais, também gosto de música pop! Algumas canções da Rihanna, Katy Perry, Kylie Minogue, Britney Spears, Sia, Billie Eilish e, claro, nossa musa precursora, Madonna, além de quem tenta copiá-la — às vezes com sucesso, outras nem tanto — como Cindy Lauper.
Entretanto, é claro que minha análise se voltará para a versão adaptada por um artista de rock alternativo, o grande compositor norte-americano Darwin Deez.
É conhecida a interpretação que Quentin Tarantino apresenta no filme Cães de Aluguel sobre a música Like a Virgin, de Madonna. Segundo sua visão, a canção retrata uma mulher experiente, vivida, que ao se relacionar com um parceiro cujo membro sexual era descomunal — muito provavelmente um negro, insinua ele — sente-se como se estivesse fazendo sexo pela primeira vez. Como uma virgem.
De certa forma, Teenage Dream traz uma ideia semelhante, mas sob outra perspectiva. A letra apresenta um eu lírico jovem, em idade pré-adulta (por volta dos 16 anos), que se envolve com alguém mais velho, de 21. Esse relacionamento a faz se sentir novamente uma adolescente, arrebatada pelo frescor do amor e do desejo. Mas talvez o significado vá além: talvez a pessoa seja ainda mais velha e, no relacionamento, resgate sentimentos juvenis, remetendo à própria Katy Perry, que estava prestes a casar-se com Russell Brand.
Se considerarmos essa camada interpretativa, Teenage Dream pode ser lida como a sensação de reviver o amor na adolescência, de entregar-se ao parceiro com a intensidade e a inocência de quem está descobrindo o prazer e o corpo. Em outras palavras, a mesma ideia que Tarantino sugere em sua interpretação de Madonna:
“Be your teenage dream tonight (tonight)”
(Ser seu sonho adolescente essa noite (essa noite))
A música, portanto, não se limita a uma canção romântica genérica. Ela dialoga com a experiência do amor e do desejo como redescobertas, explorando a nostalgia do primeiro amor e sua intensidade incontrolável.
A partir desse ponto, cabe analisar como Darwin Deez reinventa essa temática e o que sua versão nos revela sobre a essência dessa canção.
Darwin Deez surgiu em 2010 com seu álbum Radio Detector, um trabalho que se destaca pelo lirismo afiado, humor peculiar e melodias cativantes. Sua sonoridade mistura elementos de surf rock e guitarras angulares reminiscentes do estilo de Andy Gill, do Gang of Four, combinadas com batidas eletrônicas sutis que conferem um ar psicodélico. Essa fusão musical antecipa, de certa forma, a abordagem que o Tame Impala, talvez minha banda predileta da atualidade, desenvolveria com maestria nos anos seguintes.
Visualmente, Deez encarna uma estética híbrida entre o hippie e o hipster, um estilo despojado que reflete sua música irreverente e introspectiva. Seu maior sucesso comercial veio com Constellations, mas aqui quero destacar outra composição sua: Bad Day.
Essa faixa captura um espírito de inveja mesclado a um rancor quase infantil. A letra expressa um desejo malicioso de que pequenas tragédias cotidianas aconteçam com alguém — possivelmente um rival ou um desafeto. O ressentimento transparece em versos que descrevem infortúnios triviais, como perder a última página de um livro ou esquecer a janela do carro aberta na chuva.
Há, no entanto, uma leitura subtextual mais profunda: a possibilidade de que essa raiva venha de um desejo reprimido, um sentimento amoroso nunca assumido que se transforma em hostilidade.
O trecho a seguir ilustra essa mescla de ironia e despeito:
I hope that the last page of your 800-page novel is missing.
(Eu espero que a última página do seu livro de 800 páginas esteja faltando.)
And I hope that it rains if you leave the window down on your red Mustang.
(Eu espero que chova quando você deixar a janela aberta no seu Mustang vermelho.)
Cause every day ought to be a bad day for you.
(Porque todo dia deveria ser um dia ruim pra você.)
A última estrofe da versão original tinha uma nuance curiosa:
(And if you’re out of clean sheets, I hope your new girl takes off and it’s clear why.)
(E se você estiver sem lençóis limpos, espero que a sua nova garota vá embora, e o porquê é óbvio.)
Essa linha foi posteriormente alterada, talvez para suavizar sua conotação. Mas o tom da música permanece o mesmo — um retrato mordaz do ressentimento cotidiano, que pode ser tanto uma piada cruel quanto uma confissão de fraqueza emocional.
Outra grande composição de Darwin Deez é “DNA”, uma canção que transforma termos da biologia e da genética em um lirismo melancólico sobre perda e identidade. Deez usa referências científicas para expressar um amor que o redefiniu e, posteriormente, o desestabilizou, como se sua própria constituição genética tivesse sido alterada por essa relação.
Logo no primeiro verso, a ideia de um “gene para sentir” já sugere uma desconexão emocional irreversível:
When we talk it’s not the same but I already lost the gene for feeling.
(Quando falamos, não é a mesma coisa, mas eu já perdi o gene do sentimento.)
O uso do termo “gene” aqui é engenhoso. Ele transforma o sentimento – algo abstrato – em uma característica biológica que pode ser perdida, como se o protagonista tivesse sido geneticamente modificado pela experiência do amor e da separação.
No verso seguinte, Darwin Deez brinca com a contagem de cromossomos, como se estivesse sendo gradativamente desfeito, geneticamente incompleto:
“But when I call you are never home and I am down to six or seven chromosomes.”
(Mas quando eu ligo, você nunca está em casa, e eu estou reduzido a seis ou sete cromossomos.)
Aqui, a hipérbole é evidente. Humanos possuem 46 cromossomos (23 pares), então a ideia de “cair para seis ou sete” sugere uma redução drástica, quase um colapso genético, uma metáfora para a sensação de perder a identidade sem a outra pessoa.
O verso seguinte reforça esse sentimento de solidão e desestruturação:
But you don’t care or understand how it feels to be a single double strand.
(Mas você não se importa nem entende como é ser uma única dupla hélice.)
A dupla hélice do DNA, que simboliza a unidade e a interdependência da vida, aqui aparece fragmentada. O eu lírico não apenas perdeu o amor, mas também perdeu o que o definia — agora ele é “uma única dupla hélice”, uma contradição genética que enfatiza sua solidão.
O refrão traz a mensagem mais direta da canção:
“All these molecules don’t make me who I am, you did.”
(Todas essas moléculas não fazem de mim quem eu sou, você faz.)
Aqui, a biologia perde para o impacto emocional do relacionamento. Não são os átomos ou as moléculas que determinam sua identidade, mas sim a relação vivida. Deez subverte a ideia de determinismo biológico e sugere que o amor tem mais poder de transformação do que o próprio código genético.
A canção “DNA” é um ótimo exemplo de como Darwin Deez utiliza um vocabulário técnico para criar uma metáfora poética sobre o amor, a perda e a identidade. A ciência se torna um espelho das emoções, e a genética, um código que pode ser reescrito pelas experiências humanas.
Darwin Deez, com sua habilidade única de reinterpretar canções pop, fez uma versão memorável de “Teenage Dream” de Katy Perry, apresentada no Live Lounge da BBC em 2010. Nessa adaptação, ele não apenas trouxe seu estilo característico, com um toque de humor e ousadia, mas também introduziu mudanças significativas na letra original, imbuindo a música de um caráter mais irreverente e um tanto “safado”.
A versão original de Katy Perry destaca um amor em que a pessoa amada é apreciada não apenas pela sua aparência, mas também pela sua essência – sem maquiagem e com um humor despretensioso. O ritmo otimista da música combina perfeitamente com a letra, criando uma atmosfera alegre e cheia de energia positiva. Essa canção transmite ao ouvinte o frescor do amor jovem e sem filtros, com uma leveza que é difícil de ignorar.
A letra sugere que, ao se apaixonar, muitas vezes idealizamos o outro, um fenômeno que Stendhal chamou de “cristalização”, no qual começamos a atribuir qualidades inexistentes à pessoa amada. Os versos a seguir exemplificam esse fenômeno, como se a pessoa fosse mais do que realmente é, pela ótica da paixão:
You think I’m pretty without any makeup on
(Você me acha bonita sem maquiagem)
You think I’m funny when I tell the punch line wrong
(Você acha que sou engraçada quando conto a piada errada)
Esses versos trazem a ideia de um amor que transcende as aparências e os defeitos cotidianos, e demonstra o poder revitalizador do afeto. A pessoa amada não apenas a vê de uma maneira única, como também a faz se sentir mais completa, o que acaba por derrubar as barreiras internas que ela construiu ao longo do tempo.
E também da força revigorante do amor, que floresce ao encontrar um parceiro capaz de enxergar e exaltar sua beleza até nos instantes mais despojados, sem artifícios ou máscaras. Um amor que não apenas admira, mas eleva o espírito, talvez pelo encanto dos elogios ou pelo alento dos incentivos, dissolvendo barreiras silenciosas. Porque, ainda que alguém se sinta completo na solitude, a presença de quem sabe valorizar torna tudo ainda mais pleno, expandindo horizontes que antes pareciam bastar, como nos versos a seguir:
I know you get me, so I let my walls come down, down
(Eu sei que você me entende, então deixo minhas barreiras esvanecerem, irem para baixo)
Before you met me, I was alright, but things were kinda heavy
(Antes de você me conhecer, eu estava bem, mas as coisas eram meio pesadas)
You brought me to life, now every February, you’ll be my Valentine, Valentine
(Você me trouxe à vida, agora todo fevereiro, você será meu namorado, meu namorado)
Esses versos revelam alguém que, apesar de já estar bem consigo mesmo, encontrou a pessoa que, ao valorizar suas qualidades, a faz sentir-se mais leve e feliz. O poder do amor aqui é evidente, mostrando como ele pode transformar o estado emocional de uma pessoa, até mesmo trazendo a sensação de renovação e vitalidade.
É justamente essa sensação de libertação e entrega que Darwin Deez captura com sua versão da música. No entanto, ele faz uma adaptação ousada ao trocar a palavra “love” por “sex”, o que adiciona uma camada de intimidade mais explícita e direta, além de melhorar a rima com “regrets”. Enquanto a versão original sugere uma entrega ao amor, a versão de Deez se aprofunda na entrega física e no desejo imediato, transformando a música em um tributo ao prazer sensual.
Let’s go all the way tonight, no regrets, just love
(Vamos até o fim essa noite, sem arrependimentos, só amor)
Na versão de Darwin Deez, esses versos se tornam:
Let’s go all the way tonight, no regrets, just sex
(Vamos até o fim essa noite, sem arrependimentos, só sexo)
Essa troca de “love” por “sex” faz a música ganhar uma conotação mais íntima e sensual, como se a conexão entre as duas pessoas fosse mais física do que emocional. O verso reflete a intensidade do desejo e o êxtase do momento, com a ideia de que, nesse tipo de relação, o amor pode ser substituído pelo prazer imediato e pela entrega sexual.
A apoteose da música se dá no refrão:
“We can dance until we die, you and I will be young forever.”
(Podemos dançar até morrer, você e eu seremos jovens para sempre.)
“You make me feel like I’m livin’ a teenage dream.”
(Você me faz sentir como se eu estivesse vivendo um sonho adolescente.)
Aqui, o amor é retratado como uma força imortal, um elixir da juventude que rejuvenesce os amantes, mantendo-os suspensos no tempo. A ideia ecoa o mito de Calipso e Ulisses: a deusa oferecia ao herói a promessa de um corpo jovem e uma beleza eterna, desde que ele permanecesse ao seu lado. Mas Ulisses, movido pelo amor por Penélope, escolhe Ítaca, seu verdadeiro lar, seu filho Telêmaco — é lá que reside seu verdadeiro teenage dream.
O Clímax da Emoção
“The way you turn me on, I can’t sleep.”
(O jeito que você me excita, eu não consigo dormir.)
“Let’s run away and don’t ever look back, don’t ever look back.”
(Vamos fugir e nunca mais olhar para trás, nunca mais olhar para trás.)
O desejo atinge um nível quase insuportável: o amante não dorme, inquieto, consumido pela excitação e pelo arrebatamento. Há aqui uma entrega absoluta ao momento, um impulso de fuga para viver o amor sem amarras. Um detalhe interessante é que, em algumas performances ao vivo, Katy Perry altera a expressão “look back” (olhar para trás) para “look whack”, uma gíria que pode sugerir agir de forma inadequada ou estranha. Assim, o verso adquire uma nova camada: o amor é tão intenso que desafia qualquer racionalidade, tornando qualquer hesitação desnecessária.
“My heart stops when you look at me, just one touch.”
(Meu coração para quando você olha para mim, apenas um toque.)
“Now, baby, I believe this is real.”
(Agora, amor, eu acredito que isso é real.)
O amor chega à sua manifestação mais pura: a ideia de que um simples olhar, um único toque, pode suspender o tempo, congelar o instante. O coração para, mas não de medo — e sim da epifania de que aquilo é real, de que esse sentimento não é um devaneio passageiro, mas algo genuíno, palpável.
A música, no fim das contas, é um hino ao amor juvenil, não no sentido etário, mas na sensação de frescor, descoberta e intensidade. Um amor que, como nas antigas epopeias e nos romances atemporais, promete eternidade — ou, ao menos, a ilusão mais doce dela.
A música ganha contornos de sensualidade, paixão e entrega. O desejo se inflama, ardendo à flor da pele, como um adolescente em plena puberdade, descobrindo os próprios impulsos:
“I’ma get your heart racing in my skin-tight jeans.”
(Vou fazer seu coração acelerar no meu jeans colado.)
“Be your teenage dream tonight.”
(Ser seu sonho adolescente essa noite.)
“Let you put your hands on me in my skin-tight jeans.”
(Deixar você pôr as mãos em mim no meu jeans colado.)
Aqui, Deez adiciona um toque ainda mais provocativo, inserindo a palavra dirty depois de hands, transformando o verso em “Let you put your hands dirty on me in my skin-tight jeans”, cuja tradução sugere algo como “Deixar você pôr suas mãos pervertidas no meu jeans colado.” A sensualidade se intensifica, evocando a tensão erótica do flerte, da provocação, da audácia juvenil.
E é justamente essa audácia que transparece em outro verso:
“So take a chance and don’t ever look back, don’t ever look back.”
(Então arrisque-se e nunca mais olhe para trás, nunca mais olhe para trás.)
Aqui, o amor é um salto no escuro, um desafio ao medo, um convite à entrega sem hesitação. Mas Deez brinca com a sensualidade da cena ao substituir “don’t ever look back” por “don’t let your dress wet”, sugerindo algo como “não deixe seu vestido molhado”, uma metáfora para a excitação do desejo e a intensidade da entrega.
Em meio a esse turbilhão de emoções, há também espaço para ironia e leveza. Em uma referência humorística à vida pessoal de Katy Perry na época, Darwin canta:
(Você me faz muito feliz e logo serei a Sra. Russell Brand.)
Um aceno lúdico ao relacionamento da cantora com o comediante britânico, com quem ela foi casada.
Outro trecho carrega um tom ainda mais irônico:
“I’m sixteen and he’s twenty-one, you and I, we’ll be young forever.”
(Eu tenho 16 e ele 21, nós dois seremos jovens para sempre.)
Aqui, há uma dualidade intrigante: de um lado, a afirmação da autonomia juvenil — uma adolescente que sabe o que quer e se envolve com alguém mais velho. De outro, a consciência de que o tempo é implacável, e por mais que se sintam vivendo um teenage dream, a juventude não dura para sempre. Inevitavelmente, eles terão que crescer.
E, no grand finale, a entrega absoluta:
“Be your teenage dream tonight (Tonight, tonight, tonight…)”
(Ser seu sonho adolescente essa noite (Essa noite, essa noite, essa noite…))
A repetição hipnótica do tonight amplifica a sensação de que tudo converge para um único instante: uma noite para ser vivida sem arrependimentos, sem promessas além do agora. É a culminação do êxtase, a sublimação do desejo e da fantasia juvenil.