Hal Ashby foi um dos nomes mais brilhantes da Nova Hollywood, um cineasta visionário que capturou o espírito de sua época com sensibilidade ímpar. No entanto, sua trajetória foi tragicamente marcada pelo envolvimento intenso com drogas, um reflexo da contracultura que o moldou. Influenciado pelo movimento hippie, pelo Festival de Woodstock e pelo lema “sexo, drogas e rock ‘n’ roll” — substituindo o rock pelo cinema — Ashby viveu no limite entre o gênio e a autodestruição.
Seu talento resplandeceu nos anos 1970, período em que dirigiu algumas das obras mais icônicas da época.
Em Ensina-me a Viver (Harold and Maude, 1971), Ashby contou a delicada história de Harold, um jovem obcecado pela morte que encena repetidamente seu próprio suicídio até encontrar em Maude, uma mulher septuagenária em estado terminal, um amor libertador e subversivo. O filme, protagonizado por Bud Cort e Ruth Gordon, tornou-se um clássico cult, misturando humor negro e existencialismo sob a trilha sonora mágica de Cat Stevens.
Já no auge de sua carreira, Ashby dirigiu Shampoo (1975), uma sátira mordaz sobre o vazio existencial da elite de Beverly Hills na era Nixon. O longa, estrelado por Warren Beatty, Julie Christie e Goldie Hawn, transformou-se em um sucesso estrondoso, consolidando seu nome na indústria. Mas, apesar do prestígio, seus vícios minaram sua genialidade, e sua trajetória, assim como suas obras, carregou o tom melancólico de uma geração que sonhou alto, mas caiu no abismo do excesso.
Mas o filme de Hal Ashby que mais me fascina, aquele que se tornou meu predileto, é Muito Além do Jardim (Being There, 1979), uma obra-prima lançada pouco antes da morte do diretor. A ironia do destino é que os créditos finais mostram até mesmo um caixão, como um prenúncio do fim de Ashby e, ao mesmo tempo, uma metáfora perfeita para o vazio das elites que ele tanto satirizou.
O filme acompanha a jornada de Chance, um jardineiro ingênuo e analfabeto, interpretado com maestria por Peter Sellers. Sua visão de mundo foi moldada exclusivamente pela televisão, sua única fonte de aprendizado. Ainda assim, ele desempenha suas funções com zelo e tranquilidade, alheio às complexidades da vida real. Quando seu patrão morre, Chance é obrigado a deixar a mansão onde viveu recluso por anos, sendo lançado abruptamente no mundo exterior.
O que se desenrola a partir daí é uma fábula mordaz sobre a superficialidade da alta sociedade. Seu porte distinto, resultado da convivência com a aristocracia e da repetição inconsciente dos trejeitos vistos na TV, transforma-o num verdadeiro dândi. Ele não possui erudição, apenas intuição, mas sua elegância instintiva e modos refinados fazem com que seja imediatamente confundido com um nobre intelectual.
A crítica social de Ashby é feroz. Assim como Buñuel fez em O Discreto Charme da Burguesia (1972), ele expõe a hipocrisia das elites, que ostentam cultura e sofisticação, mas são facilmente enganadas por aparências. Chance, com sua simplicidade e ausência de pretensão, revela a fragilidade de um mundo onde o status vale mais do que o conteúdo.
Agora, faço um paralelo entre o filme e minha própria vida. Hoje, posso dizer com convicção: escolhi o caminho que trilho. Optei pela sobriedade e pela saúde em detrimento da loucura e do prazer efêmero. Enquanto muitos acreditam no livre-arbítrio, mas apenas seguem a única opção disponível, eu pesei as alternativas, enxerguei os dois caminhos e decidi viver aquele que mais condiz com minha individualidade.
Essa clareza só foi possível porque compreendi o valor da solidão. Muitos não suportam estar sós e, por medo do vazio, se envolvem com a primeira pessoa que aparece — às vezes ainda no colegial, com alguém que testemunharam levando lancheira para a escola. Construções assim, calcadas no hábito, tendem a se arrastar, e, quando o amor se esvai, resta apenas um contrato tácito, muitas vezes selado pela necessidade de um filho que dê sentido à relação Sem terem investido em si mesmos, sem terem experimentado a solitude necessária à reflexão e ao autoconhecimento, acabam se perdendo no peso das responsabilidades e na falta de evolução pessoal.
Admito sem pudor: houve períodos em que estive só, ocioso, e, por vezes, me envergonhei disso. Mas, olhando para trás, vejo que esse tempo foi o mais fértil de minha vida. Não foi desperdício, mas um ciclo de aprendizado, de amadurecimento silencioso.
Identifico-me, assim, com os oito anos de autoaperfeiçoamento de Hans Castorp em A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Para muitos, pode parecer um período inútil, uma fuga do mundo real. Mas, como para Castorp, esses anos de aparente inércia foram, na verdade, fundamentais para minha jornada. Esse dolce far niente, essa suspensão no tempo, longe de ser um atraso, foi um mergulho essencial na introspecção — um tempo de descoberta que ecoa na pessoa que sou hoje.
Se hoje me permito focar mais na minha saúde, ler menos e escrever mais, e ainda assim tenho conteúdo para oferecer, é porque houve um tempo em que mergulhei no estudo solitário, na introspecção silenciosa. Passei incontáveis horas no escuro das salas de cinema, absorvendo a filmografia completa de cineastas renomados, tentando compreender a história do cinema em sua amplitude. Fiz o mesmo com a filosofia, buscando uma visão abrangente, sociológica, que não se limitasse a fragmentos dispersos.
Tudo isso, somado, constitui o arcabouço do meu pensamento atual. Se sou capaz de elaborar um discurso original, é porque investi tempo e dedicação nesse processo — um tempo que muitos querem pular, como se o conhecimento pudesse ser absorvido por osmose, assistindo a vídeos curtos no YouTube, esperando que a profundidade lhes seja entregue sem esforço. Mas não é assim.
Se hoje tenho algum repertório, é porque, como disse o jornalista José Trajano, “eu vim de longe”. E se sou alguém interessante, capaz de ser uma boa companhia para os outros, é porque, antes de tudo, sou uma boa companhia para mim mesmo. Como poderia oferecer algo ao outro se não suportasse minha própria presença? Se precisasse desesperadamente da companhia alheia como uma muleta para dar sentido à minha existência? O outro pode me complementar, mas jamais me carregar.
Na adicção, por mais que soubesse das minhas qualidades, o peso das drogas me fazia sentir diminuído diante dos outros. E isso entrava em conflito com minha natureza — altiva, nobre, intimidadora. Sempre fui assim. Sei que a pessoa que amo pode ter conhecido e até se relacionado com homens fisicamente mais bonitos, com corpos mais esculpidos. Mas o conjunto que me define — o que sou, o que construí, o que transparece em minha essência — esse, tenho certeza, é singular.
Sei que ela jamais conheceu, e dificilmente conhecerá, alguém sequer próximo disso. E essa certeza não nasce da soberba, mas da consciência plena de quem sou.
Por isso, escolhi amá-la. Escolhi estar aqui, demonstrar meus afetos, minha singularidade, e viver de forma saudável e sóbria.
Fico abismado com algumas mulheres que, para não ficarem sozinhas, acabam se relacionando com o primeiro que aparece elogiando, mesmo que o cara não tenha nada a ver com elas. E convenhamos, o sujeito é hostil, vulgar, feio, deselegante e sem conteúdo, não tem nada pra falar. Talvez, no máximo, o cara seja bom de cama e tenha o pau grande, porque, sinceramente, só isso justificaria.
Uma escolheu viver uma vida de aparências, relacionando só com pessoas do seu meio social. afastando-se de mim, do amor, talvez até de si mesma.
Outra optou por se esconder atrás de um véu de indiferença, apagando a conta que a conectava ao que um dia foi real, lidando com seus próprios demônios na solidão, escrevendo para ninguém. Fugindo não só de mim, mas de seus sentimentos, como quem evita encarar um monstro imaginário, negando até o que parecia evidente: que me ama.
Uma outra optou por um companheiro bem mais velho, mas que sequer se faz presente para ler seus escritos ou compartilhar com ela o cotidiano. Enquanto isso, eu a valorizava, admirando não só sua beleza exterior, mas a profundidade de sua alma, o brilho que irradiava de dentro para fora.
Outra se entregou à vida familiar, ao amor tradicional, mas ousou flertar com o proibido, buscando o prazer naquilo que era, à sua maneira, uma transgressão.
Algumas, simplesmente, escolheram minha amizade, na sua forma mais pura, sem mais pretensões, mas com um carinho silencioso e sincero.
Já outra, talvez tomada pelo medo ou pela indiferença, me bloqueou, apagou sua foto, e abandonou sua conta nas redes. Agora, seus textos sumiram, e com eles também se foi seu brilho, o encantamento que antes parecia emoldurá-la.
Há ainda aquela, em sua esquivez, que optou por não responder meus e-mails e não permitir mais comentários em sua página, justificando que “a escritura fala por si”, que ela “exala liberdade e independência”. Mas duvido que não me leia secretamente, talvez ansiosa para esboçar um pensamento lascivo, imaginando-me em sua mente, com meu corpo moreno e esbelto, sendo seu em desejos mais secretos, ocultos nas profundezas de seus pensamentos mais recônditos.
A vida, afinal, é feita de escolhas. E são elas que moldam nossa existência, nossa essência, nossa aparência. Podem ser verdadeiras, ou podem ser máscaras, tentando enganar o mundo e até a nós mesmos. Mas, no fundo, não há como negar: cada escolha, por mais sutil que seja, nos define de uma maneira única, irremediável.