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DAVE LE DAVE
SIM, ELE MESMO
Textos

SOMOS PARECIDOS. NÃO IGUAIS!

A parte em que me reconheço nele é nosso histórico de insanidade e recuperação. Em um determinado momento, ele quis mudar de vida e resolveu procurar uma amiga de infância. No entanto, ele disse que só aceitaria ficar com ela se fosse para casar, para viver o que nunca viveu, para se tornar um pai de família respeitável, longe da vida de insanidade.

 

De certa forma, ele conseguiu. Hoje, é um pai exemplar, carinhoso, não obstante trai a esposa descaradamente. Nisso, divergimos frontalmente.

 

Ontem, poucas horas depois de ser rejeitado, eu estava conversando com ele, num misto de nostalgia e resiliência, sobre o tempo em que era meu dia lavar a louça na clínica. Era uma tarefa que ocupava o dia inteiro, pois eu precisava lavar os utensílios do café da manhã, do almoço, do café da tarde e do jantar. Em cada refeição, havia talheres, pratos e copos de plástico, que acumulavam gordura e eram difíceis de limpar. O cozinheiro, sempre atento, mandava voltar qualquer prato que ainda tivesse resquícios de gordura.

 

Além disso, havia as panelas industriais — mais de uma dúzia delas — e centenas de pratos, talheres e copos. O trabalho exigia uma verdadeira linha de produção. Quem está acostumado a lavar louça apenas em casa não faz ideia do esforço necessário para dar conta dessa tarefa.

 

De fato, passar por esse tipo de experiência, como meu amigo ressaltou, não é para qualquer um. Mas pelo menos havia uma vantagem: quem estava encarregado da louça era o último a tomar banho, o que significava poder aproveitar a água quente sem limite de tempo. Para quem não sabe, os banhos na clínica eram controlados, durando cerca de três minutos por pessoa. Era um lugar onde os fracos não tinham vez. Não era qualquer um que tinha psicológico e disposição para encarar essa rotina.

 

Por isso, penso nessa época com nostalgia e não mudaria nada do que fiz. Esse caminho foi necessário para minha descoberta pessoal e para me tornar quem sou hoje. Nesse ponto, eu e meu amigo concordamos. Ele diz que reviveria todas as experiências com ocultismo, insanidade e drogas, pois acredita que foram essenciais para seu aprendizado.

 

Assim como ele, procuro uma transformação da minha vida pregressa. Quero tomar um novo rumo, experimentar algo que nunca vivi: um amor genuíno. Responsabilidade eu já conheço — afinal, já tive empresa e fui responsável por um setor —, mas desejo viver a experiência de ser um pai de família responsável, assim como meu irmão.

 

No entanto, há um ponto em que me distancio completamente do meu amigo: considero a traição uma vulgaridade e uma covardia com a companheira com quem decidi compartilhar a vida. Por isso, nunca me comprometi, ainda, seriamente com ninguém. Quando embarcar em um relacionamento, será com comprometimento afetivo, responsabilidade, de corpo e alma.

 

Tenho certeza de que meu colega não gostaria de ser eu. E o mais interessante da individualidade é que eu tampouco gostaria de ser ele. Não abriria mão de quem sou, das minhas experiências, dos caminhos difíceis que trilhei, de tudo que vivi, estudei, aprendi e conheci, apenas para ter a vida ou a aparência de outra pessoa. Por isso, jamais poderia dizer que o invejo.

 

Afinal de contas, ele tem uma frase dos Engenheiros do Hawaii tatuada, banda que eu abomino, e eu tenho uma tatuagem de uma película cinematográfica em forma de bracelete. O dele é um bracelete comum, que fecha o braço indicando força.

 

Eu sou erudito, elegante, intelectual, educado, espirituoso. Ele é galã, atlético, e embora inteligente e espirituoso, é esotérico, enquanto eu sou cético. Sua experiência de vida é mais prática e menos afeita a estudos e leitura. Ele parece argentino ou talvez europeu, e minha beleza é tipicamente brasileira, algo mais exótica.

 

Ele gosta de cinema, mas só assiste a filmes dublados, o que, pra um cinéfilo como eu, é uma heresia. Bom, cada um na sua. Embora parecidos, somos distintos.

 

Mas eu não queria ser ele. Não queria, como no filme Quero Ser John Malkovich, acordar na pele dele. Embora, com a aparência dele e com minha elegância e conhecimento, eu comeria muito mais mulher.

 

Mas viver a vida com a beleza que a natureza deu pra ele e conquistar mulherada assim é jogar a vida no easy, talvez até com cheats de trapaça. Eu jogo no hard, na raça mesmo, com conhecimento acumulado, talento e exercendo a linguagem.

 

A derrota de ontem me machucou porque mexe com a vaidade, mas não deve ser confundida com inveja. Foi apenas orgulho ferido, vaidade masculina, nada mais.

 

Ontem mesmo, ele ia atender um cliente latino e não sabia falar inglês. Perguntou-me sobre um aplicativo bom para tradução simultânea. Não soube indicar um de imediato, mas tenho certeza de que o ChatGPT é uma alternativa melhor que o Google Tradutor. Talvez para me testar, ele pediu que eu falasse algo em inglês para ver como o aplicativo funcionava. Prontamente, atendi ao pedido e o ChatGPT traduziu perfeitamente. Ele ficou admirado e comentou, quase como Miranda na peça A Tempestade: “Que da hora falar inglês, é chique.”

 

Talvez, em algum momento da conversa entre os dois, tenham falado sobre mim — não com piedade, mas com admiração. Isso me anima, me conforta e, de certa forma, afaga meu orgulho ferido.


 

No fim das contas, a vida é isso: um jogo onde cada um escolhe seu modo de dificuldade. Ele joga no easy, eu jogo no hard. Mas o que importa não é a dificuldade escolhida, e sim a autenticidade com que se joga.

 

Ele vive do jeito dele, eu vivo do meu. Nos reconhecemos em alguns pontos, discordamos em outros, e tá tudo certo.

 

É como o título de um excelente filme estrelado pelo Jack Nicholson, da Nova Hollywood, dirigido pelo Bob Rafelson, cujo nome original em inglês é Five Easy Pieces, mas que, em português, foi brilhantemente traduzido como Cada Um Vive Como Quer. Esse título resume bem o que quero dizer.

 

A real é que, apesar das semelhanças, somos dois jogadores com builds diferentes, seguindo caminhos distintos. E eu não trocaria o meu por nada.



 

 

DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo)
Enviado por DAVE LE DAVE II (Sim Ele Mesmo) em 05/02/2025
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