Este texto, que na verdade se intitula "A Diferença entre Filosofia e Senso Comum", foi rebatizado para espantar o recalque e chamar a atenção. Admito que é uma estratégia para afastar o mau olhado e desfilar minha elegância, beleza, sofisticação e inteligência em mais um texto que promete sambar na cara da sociedade. Em 10 atos — como uma epopeia grandiosa —, aqueles que chegarem ao final sairão mais sábios. Boa leitura!
(E espero que leiam até o fim, para benefício e privilégio de vocês mesmos. Sei que, à primeira vista, o tamanho do texto pode intimidar, especialmente nestes tempos de Instagram, Twitter e TikTok, onde imagens e frases curtas prevalecem sobre o conteúdo. Mas é preciso resistir. Prometo que valerá a pena — e eu entrego o que prometo.)
A diferença entre filosofia e senso comum é tão grande quanto água e óleo; são incompatíveis. A filosofia existe, em minha visão, como um contraponto a duas propostas fundamentais: o pensamento de senso comum, que é pouco reflexivo, e a autoajuda. A autoajuda é uma fórmula vendida como milagrosa, uma receita fácil para alcançar valores significativos de senso comum, como paz, amor e tranquilidade. Esses valores servem para qualquer um, desconsiderando a individualidade de cada pessoa. Como bem disse Nietzsche: "As pessoas não são iguais, assim fala toda a justiça. O que eu quero, não podem elas querer.” A autoajuda, portanto, reduz todos a uma massa uniforme, em que ninguém se destaca e onde não há individualidade, apenas a ausência de conflitos e a ilusão de harmonia.
Paradoxalmente, embora o senso comum se oponha à filosofia, boa parte da visão de mundo que guia o pensamento das pessoas regidas pelo senso comum deriva de ideias profundamente filosóficas e rebuscadas. A diferença é que os adeptos do senso comum absorvem essas ideias de forma socialmente inconsciente, sem reflexão crítica e sem saber sua origem. Por exemplo, muitos acreditam ser seres conscientes, evocando o cogito de Descartes: "Penso, logo existo." Este conceito filosófico é fundamental para a discussão sobre a consciência e a reflexão individual. Além disso, é comum acreditar que são livres e que suas ações têm consequências no futuro, o que revela traços de existencialismo. Essa filosofia, associada a pensadores como Jean-Paul Sartre, argumenta que o indivíduo é livre para ser o que é, e suas ações definem quem ele é e a sociedade na qual deseja viver. A partir dessas decisões, surge sua "essência". Este pensamento está intimamente ligado à ideia de livre-arbítrio, onde o ser humano pode usar a consciência, ou alma, para agir livremente, sem influência do corpo, pois corpo e alma seriam entidades distintas.
Essas crenças têm raízes profundas no cristianismo, que, por sua vez, se baseia em ideias filosóficas como o estoicismo e o platonismo. O estoicismo, com sua ênfase na razão e na virtude como guias para uma vida plena, e o platonismo, que defende a existência de ideias puras e universais, herdaram elementos de tradições religiosas do Egito, da Mesopotâmia e de outras culturas do Oriente Próximo. A ideia de julgamento final, por exemplo, é um tema recorrente que encontramos em diversas culturas. No Egito, a crença no julgamento da alma após a morte, onde o coração do falecido era pesado contra a pena da deusa Maat, reflete a busca por justiça e verdade. Na Mesopotâmia, o mito do dilúvio, que aparece em várias culturas, simboliza a luta entre o bem e o mal, assim como a dualidade entre céu e inferno. Essa dicotomia é refletida nas tradições zoroastristas da Pérsia, que também falam sobre a vinda de um messias e a ideia de um julgamento final.
Essas influências moldaram a forma como o senso comum compreende conceitos de ética e moralidade. No senso comum, todos têm sua própria ideia de bom e mau, de ética, do que é agir corretamente e do que é amor, mas sem refletir sobre isso. Essa superficialidade impede um entendimento mais profundo das implicações filosóficas que sustentam essas crenças.
Vocês sabem que o método de Sócrates era justamente desmascarar a ignorância das pessoas ao questioná-las sobre o real significado das palavras. Ele utilizava a dialética, um método de perguntas incessantes, com o objetivo de chegar à verdade. Mesmo na ausência de uma resposta objetiva, essa aporia simboliza sabedoria, pois mostra que a reflexão sobre o assunto ocorreu. Sócrates resume sua essência na famosa frase: "Só sei que nada sei." Ele se via como uma parteira da verdade, trazendo à luz novos pensamentos. A filosofia se distingue do senso comum pela análise e reflexão constante sobre o porquê das coisas.
Por outro lado, o senso comum recebe a verdade sem questionar, como se fossem verdades absolutas e inquestionáveis, quase mandamentos divinos.
Outro grande pensador que influenciou a maneira como o senso comum hoje compreende o direito, a punição, o certo e o errado foi Immanuel Kant. Seu objetivo parecia ser racionalizar o cristianismo, sendo ele um herdeiro do protestantismo. Kant tentou laicizar o pensamento cristão e foi bem-sucedido. A sociedade atual, o que conhecemos por ética e pela noção de certo e errado, é profundamente influenciada pela filosofia de Kant. No entanto, o vulgo ignora completamente como ele chegou a essas conclusões, que afirmam que uma ação boa é aquela que pode ser universalizada e que a ética consiste em emular o comportamento de quem ama, agindo de acordo com nosso juízo prático, sem influência do corpo. Essa abordagem ética é conhecida como "imperativo categórico", e representa uma tentativa de estabelecer um padrão moral universal.
Os valores que o senso comum considera como o bem maior também são símbolos de uma falta de elevação espiritual, onde seus ideais refletem um espírito humano reduzido a um estado de conformismo e mediocridade. Assim, buscam valores como paz, tranquilidade e conforto como os maiores bens da sociedade, sem reflexão. Esses valores superficializam a experiência humana, levando à busca por uma felicidade imediata e efêmera.
Nietzsche apresenta o "último homem" em "Assim Falou Zaratustra" como o oposto do Übermensch (além-do-homem). Esse ser humano é aquele que rejeita grandes ambições, desafios e sofrimentos em troca de uma vida segura, confortável e sem riscos. Ele é dócil, satisfeito com prazeres superficiais e incapaz de criar valores próprios, rindo da ideia de superação, pois busca apenas evitar o desconforto. Essa figura simboliza a decadência dos valores humanos em favor do conformismo.
Em "Admirável Mundo Novo", Huxley projeta uma sociedade onde a estabilidade e o prazer substituem a busca por significado. O condicionamento social, o consumo de soma (uma droga que suprime a dor), o hedonismo e a aversão ao sofrimento fazem com que os indivíduos vivam sem inquietações filosóficas ou desejos de superação. Assim como os últimos homens de Nietzsche, eles não buscam mais nada além da satisfação imediata.
O mundo perfeito de "Admirável Mundo Novo" é uma sátira do ideal governado pelos últimos homens, onde todos são iguais, ninguém deseja se destacar, e pensamentos elevados são suprimidos. A arte desaparece, e um governo totalitário apaga grandes obras. Mesmo assim, há indivíduos extraordinários que escapam dessa categorização e resistem, representados no livro por um "selvagem" que encontrou grandes livros da humanidade, proibidos, e começa a lê-los e admirá-los. Um desses livros é A Tempestade, de Shakespeare, cuja frase dá título ao romance de Huxley. Na peça, Miranda, ao ver um grupo de seres humanos pela primeira vez, exclama com admiração: “Ó admirável mundo novo, que encerra tão belas criaturas!”
Neste mundo satirizado por Huxley, a ausência de conflito é ilusória. Quando os indivíduos ficam tristes, simplesmente tomam soma para esquecer os problemas e encontrar a paz. Não há amor ou vínculos afetivos; os seres humanos são concebidos em laboratório e não têm pai ou mãe, pois até mesmo essas palavras foram suprimidas pelo governo. As relações sexuais e o hedonismo são tratados como um jogo desde a adolescência, algo natural, mas desprovido de vínculo afetivo. Os indivíduos são estratificados em castas de acordo com suas capacidades e posições sociais, e ninguém questiona sua posição, pois o Estado Mundial controla a todos. Esse controle se estende ao que nos torna humanos: a linguagem, o pensamento crítico e a reflexão.
A hipnopédia é o método pelo qual os valores e ideologias do Estado Mundial são implantados nas crianças. Esse livro encontra paralelos no filme "Alphaville", de Godard, onde palavras como amor, consciência e porquê são suprimidas do dicionário, para que os seres humanos não possam sentir, ter consciência ou questionar o porquê das coisas, tornando-se figuras manipuladas pelo governo, sem consciência. É a sociedade do senso comum, onde todos são iguais.
Valores essenciais do senso comum, como segurança, paz e felicidade, são utilizados para manipular. Em "Admirável Mundo Novo", esses mesmos valores são apresentados como objetivos fundamentais da sociedade, mas esvaziados de qualquer profundidade. A paz e a felicidade são superficiais, alcançadas pela supressão de conflitos internos e externos, enquanto a segurança é garantida por um rígido controle estatal.
Capítulo 9: O Amor e a Coragem
Neste texto, destaco como o amor exige coragem, risco e compromisso, enquanto o sistema descrito evita esses elementos. De forma similar, em "Admirável Mundo Novo", o amor é descartado em favor de relações superficiais e hedonistas. Qualquer envolvimento emocional mais profundo é visto como perigoso e subversivo.
Afinal, o que é o amor? Apenas em "O Banquete", de Platão, encontramos mais de quatro definições de amor: amor de alma gêmea, amor como desejo de conhecimento e falta, amor pela troca de experiências entre um homem maduro e um jovem, entre outras. Spinoza tem sua própria ideia de amor, Aristóteles outra, que difere da concepção cristã. Zygmunt Bauman, ao descrever o amor contemporâneo, chamou-o de amor líquido, que se assemelha ao mundo distópico apresentado por Huxley.
No mundo de Huxley, frases como “Todo mundo pertence a todo mundo” e “Uma dose de soma resolve o drama” são repetidas incessantemente. Esses slogans não são apenas formas de comunicação; eles moldam crenças e limitam a capacidade crítica das pessoas, em uma sociedade composta pelos últimos homens, conforme descrito por Nietzsche.
A filosofia, por sua vez, propõe uma visão crítica e consciente da sociedade, reconhecendo a singularidade de cada ser vivo. Não existem verdades absolutas e fórmulas mágicas, como as da autoajuda, que sirvam para todos. A filosofia deve ser uma ferramenta para promover, além do pensamento crítico, a singularidade de cada um, não para que todos sejam iguais, com um pensamento uniforme e sem critério, como um rebanho. Essa é a sociedade imaginada por Huxley: conformista, que busca a ausência de conflito, paz, segurança e prazer, onde todos são iguais e ninguém se difere de ninguém. Como diria Nietzsche: “Todos são iguais. Todos querem o mesmo. Quem pensa diferente vai por conta própria para o hospício. Um só rebanho e o mesmo pensamento. Assim pensam os últimos homens: e piscam os olhos.”