Sempre uso a filosofia como lente para entender a realidade. Por isso, ao responder um comentário da autora “LittleFunny”, percebi que o tema caberia melhor em um texto elaborado, com mais garbo, elegância e sofisticação. Assim, vou explorar ideias de pensadores como Santo Agostinho, Bergson, Nietzsche, Espinosa, Epicuro e Platão.
A autora mencionou que meu caso amoroso antigo, que guardo na memória, ainda faz parte do presente. Ela está parcialmente correta, segundo Santo Agostinho, mas, para Bergson, a questão é mais complexa.
Já escrevi sobre como os conceitos de tempo e memória estão intrinsecamente ligados. Bergson distingue dois tipos de memória:
1. Memória-hábito, voltada para ações repetitivas, automáticas e práticas, como lembrar como andar de bicicleta;
2. Memória pura, que é a evocação espontânea de lembranças pessoais e únicas, trazendo o passado à tona sem uma função prática imediata.
O tempo, nesse contexto, é o período em que registramos essas memórias na mente, e ele está relacionado ao conceito de duração de Bergson. A duração é a maneira subjetiva como percebemos o tempo: por exemplo, quando estamos nos divertindo ou com uma pessoa agradável, sentimos que o tempo “passa rápido”. Contudo, o relógio marca o mesmo tempo cronológico. Para Bergson, há, então, o tempo quantitativo (o do relógio) e o tempo qualitativo (vivido ou subjetivo), que é a nossa percepção pessoal de tempo, o tempo da duração de Bergson.
Por outro lado, momentos de monotonia, como tédio ou trabalho com uma companhia desagradável, são percebidos como lentos. Isso se reflete na forma como nossa memória registra essas experiências. Thomas Mann, em A Montanha Mágica, complementa essa visão ao observar que, embora períodos curtos e intensos pareçam rápidos no momento, eles são armazenados como memórias profundas, que alongam nossa percepção da vida quando olhamos para trás. Já os momentos repetitivos e monótonos, embora pareçam se arrastar, não deixam marcas na memória e se tornam anos perdidos, um desperdício.
No amor, isso também se aplica. As experiências intensas são registradas na memória pura, tornando-se parte de nós como vivências ricas, dolorosas ou transformadoras. Ao mesmo tempo, a memória-hábito é construída no cotidiano, no processo de enamoramento. Assim, surge a pergunta: como uma pessoa ausente pode requisitar o amor de outra?
A partir dessa discussão, podemos trazer Santo Agostinho para a conversa. Para ele, o tempo é uma criação de Deus, e todos os tempos coexistem na mente divina, que é eterna e imutável. O ser humano, por outro lado, experimenta o tempo como algo linear e sucessivo, marcado pelo passado, presente e futuro. Mas, segundo Agostinho, todos esses “tempos” são, na verdade, vividos no presente: há o presente do presente, o presente do passado (nossas memórias) e o presente do futuro (nossas expectativas).
Dessa forma, LittleFunny está certa ao afirmar que meu caso amoroso antigo ainda é presente. Quando penso nele, segundo Agostinho, faço isso no presente da minha consciência, mesmo que seja uma lembrança de algo passado.
A autora também comentou sobre as mudanças nas pessoas e nos sentimentos. Aqui, podemos evocar Heráclito, que dizia que “não é possível entrar no mesmo rio duas vezes”, pois as águas já não serão as mesmas. Ela está absolutamente certa: tudo está em constante transformação, incluindo o amor.
Nietzsche, por sua vez, oferece outra perspectiva sobre o tempo. Ele propõe a ideia do eterno retorno: como a quantidade de matéria no universo é limitada e o tempo é infinito, os acontecimentos estariam destinados a se repetir eternamente. Nesse contexto, o tempo deixa de ser linear e se torna cíclico.
Pensando assim, vejo a autora como parte de uma repetição infinita: as mesmas histórias, o anonimato, as correspondências pelo Recanto das Letras, tudo se repete, como uma sombra do que já vivi.
Essa visão nos conecta ao Mito da Caverna de Platão. No mito, os prisioneiros veem apenas sombras na parede da caverna, acreditando que são a realidade. Para Platão, o verdadeiro amor deve buscar a essência, o ideal, e não se contentar com sombras ou aparências. Relacionamentos baseados em anonimato e superficialidade são como essas sombras: projeções distorcidas da realidade.
Segundo Espinosa, o amor é uma forma de alegria, um aumento da potência de agir do corpo. Quando identificamos algo ou alguém que nos causa essa alegria, dizemos que amamos. Contudo, nem todo amor ou alegria é positivo. Se o amor gera dor ou vício, ele se torna nocivo.
Espinosa defende que devemos buscar o “contentamento”, um estado de alegria que envolve o corpo inteiro e se manifesta em amores correspondidos, na contemplação da beleza e em atividades intelectuais. No amor, assim como na superação de vícios ou decepções, é necessário substituir um afeto por outro. Não se trata de “ser uma segunda opção”, mas de entender como os sentimentos humanos funcionam: a memória e os afetos precisam de novos estímulos para se transformar.
Por fim, Epicuro nos ensina a buscar prazeres que não causem dor ao corpo nem tormento à alma. Recentemente, tenho buscado prazeres saudáveis. Minha experiência com um amigo, por exemplo, trouxe-me alegria sem causar sofrimento ou culpa, e me ajudou a continuar em recuperação, longe de substâncias prejudiciais. Escrevo este texto enquanto caminho na esteira da academia, provando para mim mesmo que é possível encontrar prazer no cuidado com o corpo e a mente.
O mesmo princípio se aplica ao amor: uma desilusão amorosa pode ser superada por um novo amor, mas ele deve ser real, presente e disposto ao diálogo. Não quero mais viver nas sombras do mundo de Platão ou na repetição infinita do eterno retorno de Nietzsche. Busco uma relação autêntica, que possa me trazer contentamento, como Espinosa descreve.
Acho que respondi ao comentário da LittleFunny.