A clínica de reabilitação em que fiquei, em 2022, era um local meio clandestino, afastado, no meio do mato, longe da civilização, no extremo sul de São Paulo. No local, não havia médicos psiquiatras de plantão, no máximo uma enfermeira que trabalhava em horário comercial e distribuía as medicações. Eu presenciei diversos abusos e maus-tratos a pacientes. Não chega a ser um Bicho de Sete Cabeças, do Rodrigo Santoro, que assisti pela primeira vez justamente quando estava internado, mas sem prestar atenção ao filme porque, nesse dia, eu estava na loucura, lavando a louça de toda a clínica – uma tarefa árdua que levava o dia inteiro.
Nos momentos de intervalo, no entanto, consegui assistir aos filmes. Antes, o tratamento para dependência química era ainda mais desumano, com choques usados como forma de condicionamento para que os pacientes parassem de usar drogas, como se fossem ratos. Mas a clínica onde fiquei não era exatamente um spa. Pelo meu bom comportamento, não tive problemas. Pelo contrário, o gerente até me usou, em alguns momentos, como exemplo, dizendo como eu, mesmo recém-chegado ao local, havia abordado educadamente, dizendo: “Elson, posso pedir uma ajuda?”.
A primeira regra do local, prontamente absorvida por mim graças à minha facilidade de adaptação, era não tomar ações isoladas e sempre pedir ajuda antes. Por isso, minha atitude foi valorizada. Quando saí, ele comentava que todos os pacientes podiam ser como eu. Também, eu ficava só no meu canto, lendo; e, nos momentos em que não estava lendo, conversava, trocava experiências e risadas com bons companheiros – não vou dizer “amigos”, porque não tenho mais contato com nenhum – de recuperação, o que me rendeu muito aprendizado.
A clínica era um microcosmo social do Brasil: era miscigenada, tinha todas as etnias – negro, alemão, indígena – e também todos os níveis de escolaridade. Lá havia alunos da USP, ex-jornalistas da Folha de São Paulo, pessoas com diplomas universitários, outros que haviam abandonado os estudos, moradores de condomínio e até de comunidades. Todos coabitavam.
A clínica tinha duas unidades: uma mais cara, com ambiente mais calmo, menos pessoas por quarto, refeições melhores, mas um espaço menor; e outra mais acessível, com mais de 100 pessoas, mas em um espaço amplo, uma verdadeira chácara. Inicialmente, fiquei no lugar mais caro.
Aqui vai uma história assustadora. Logo nos meus primeiros dias, tive contato com alguns garotos que estavam tramando uma fuga. Tudo estava bem planejado. Havia três pessoas envolvidas. Um deles, que estava na louça, roubou talheres, com os quais removeria a argamassa do vidro do banheiro por onde eles sairiam à noite, sorrateiramente, pulando o muro para escapar. Como a clínica ficava no meio do mato, em uma rua desértica, eles teriam que andar horas até chegar à civilização.
Eles confiaram em mim e, de certa forma, me envolvi no plano. Concordei em ir embora junto, sem saber exatamente o terreno em que estava pisando; apenas fui no fluxo. Mas, ao longo da noite, o vigilante notou a movimentação estranha no banheiro e acionou os seguranças. Eles imobilizaram o rapaz que estava removendo a argamassa com um mata-leão, até que ele desmaiou, e o levaram para fora do alojamento. A dona da clínica foi acionada.
Um por um, todos os envolvidos no plano foram chamados para prestar esclarecimentos. Eu, deitado, estava com medo, pois havia sido cúmplice (eu havia escondido os talheres em uma sapateira). Mesmo assim, tentei parecer calmo, embora o medo tomasse conta de mim. Deitado, podia ouvir sons de socos, tapas e gritos – sinais claros de agressão e até tortura.
Finalmente, chamaram meu nome. Fui levado por um brutamontes até uma escada onde estavam os três envolvidos no plano, amarrados em cadeiras, todos molhados e com sinais claros de agressão. Havia também uma cadeira vazia. A dona do local disse que aquela cadeira estava destinada a mim, caso eu não contasse quem havia tentado violar o vidro. Com medo, não titubeei ao apontar o envolvido.
Os outros, vendo que eu era praticamente inocente, prontamente gritaram, dizendo que eu não estava realmente envolvido. Então, como eu havia colaborado, a dona apenas falou “Deus te abençoe” e me dispensou, deixando que eu voltasse ao alojamento.
No outro dia, pela manhã, fomos assistir a um filme terapêutico. Lá estava o meu amigo, delatado por mim, sem nenhum sinal de rancor, mas com a cara toda roxa– os sinais de agressão da noite anterior.
Essa foi minha despedida da clínica dos abastados, porque, como punição por estar envolvido no plano, separaram todo mundo e me mandaram para a clínica mais acessível, para passar alguns dias.
Chegando lá, o ambiente distoava muito. Era tudo mais caótico. Fui mandado para um quarto com muito mais gente, e, junto, tinha pacientes psiquiátricos, um deles apelidado de Blade, devido à sua aparência similar ao personagem do cinema.
Blade pegava nossas roupas que estavam jogadas na cama, e no dia seguinte elas apareciam na cama dele, encharcadas de urina. “O terror, o terror…” O banheiro para tomar banho tinha apenas uma cortina, ou melhor, um pedaço de pano, e às vezes ficavam até três marmanjos no banheiro, pelados, esperando a vez de tomar banho. Eu, tímido em relação a ficar nu em frente a outros homens, no final da internação já achava tudo muito natural. Cheguei até a conversar no banheiro com companheiros pelados no chuveiro, com toda naturalidade, como se estivesse com roupa.
Essa experiência mostrou como o rubor e a vergonha são apenas condicionamentos sociais. Quando o ambiente pede despojamento, logo o constrangimento, em algumas situações, passa a ser naturalizado.
Mas, por incrível que pareça, pelo espaço mais amplo – quase como uma fazenda que permitia andar, respirar ar livre e contemplar uma paisagem muito bonita em determinado horário da tarde –, pelo ambiente mais animado e pelas pessoas mais interessantes que conheci, preferi ficar nesse local do que voltar para a clínica dos abastados.
Uma dessas grandes amizades foi com A., um garoto de uns 26 anos, um ébano bonito, um negão de tirar o chapéu, como diz Alcione, e maduro para a vida. Ele morava sozinho desde cedo e me transmitiu muito das suas experiências. Ele, junto com nosso amigo E., formava comigo um trio quase inseparável. Éramos os que ficávamos lendo, embora as leituras deles fossem bem mais simples que as minhas.
Os dois me ensinaram muito. Eu nunca morei sozinho, e me virar em situações como aquelas era algo novo. A. me ensinou a lavar roupa na mão, a usar amaciante e até mesmo a dobrar as roupas da melhor maneira possível, mantendo minha mala sempre organizada – quase como se eu estivesse no exército. Seus ensinamentos eram valiosos, e minha mala era, talvez, a mais organizada de toda a clínica, minhas roupas as mais cheirosas.
E., por sua vez, era tão querido que, na primeira vez em que fui estender roupa no varal, ficou observando de cima para ver se eu faria certo, dando dicas, dizendo para estender minhas roupas ao lado das dele, mostrando a melhor forma de pendurá-las para que secassem rápido.
Às vezes, atribuo a sorte de encontrar essas pessoas em um momento tão delicado à intervenção de uma força superior, transcendente, e não ao mero acaso.
Como bom companheiro, eu era confidente de A., que me falava sobre sua paixão pela ex-mulher, como haviam rompido por besteira, o modo como ele proporcionava experiências únicas para ela. Ele ganhava bom dinheiro como motoboy e tinha intenção de fazer uma reparação com ela ao sair da clínica, reconciliando-se para que voltassem a ficar juntos. A., inclusive, me leu uma carta emocionante que havia escrito para ela ainda na clínica.
A. era uma das pessoas mais resolutas e dedicadas à recuperação. Lia o “livro azul”, uma espécie de cartilha oficial do processo. O contrato dele com a clínica era de três meses, enquanto o meu era de seis. Então, chegou o momento de nos despedirmos, quando ele foi embora e eu e E. ficamos. Isso foi no final de dezembro de 2022.
Eis que, em janeiro de 2023, houve uma movimentação estranha na clínica. Um dos funcionários chamou meu amigo E. de canto e sussurrou algo no ouvido dele. E., ao ouvir, ficou pálido, absorto e desabou em lágrimas, chorando convulsivamente: havia recebido a notícia da morte do nosso amigo A.
E. veio até mim, e eu o consolei. Fiquei tão abatido, perplexo e comovido que meu corpo reagiu de maneira estranha: eu não consegui chorar, apesar da enorme consternação interna que sentia. Isso me fez muito mal, porque não consegui desabafar e acabei internalizando a dor da perda. Mas, pelo menos, isso me permitiu consolar meu amigo E., que talvez fosse ainda mais próximo de A. do que eu.
As notícias sobre a morte de A. são cercadas de mistério, e só podemos fazer presunções. O fato é que foi suicídio. A causa exata, porém, não se sabe. Ele pode ter tentado reatar com a ex-esposa, que talvez não o tenha aceitado ou já estivesse com outra pessoa. Isso poderia ter levado a uma recaída e, subsequentemente, a uma morte proposital ou acidental por overdose.
A. era borderline. Ele se cortava. Quem se corta, às vezes, busca infligir a si mesmo uma dor física maior para ocultar a dor emocional que sente. É terrível. Talvez, ao não ser aceito, ele tenha simplesmente cortado os pulsos até sangrar e morrer. Ou pode ter sido os dois: não suportou a dor de ser recusado pela esposa e de ter recaído, decidindo, então, cortar os pulsos.
Tudo leva a crer que sua morte foi ocasionada por um pedido de desculpas negado.
Eu gosto de contar essas histórias trágicas para que as pessoas percebam a vida como ela é, porque algumas vivem de maneira esterilizada, com um modo de vida que as protege do contato com a pobreza, o sofrimento e a miséria humana. É preciso que saibam que a realidade do Brasil é bem diferente da vida de paz, segurança e conforto que elas têm devido à sua posição de privilégio.
Nietzsche foi um grande crítico desses valores conformistas da modernidade. Muitas vezes, é da tragédia, da dor e do sofrimento que surge a criação de algo novo, que o homem consegue superar a si mesmo.
Sem querer fazer um paralelo direto com o caso extremo do meu amigo A., quero mencionar um episódio pessoal recente. Vocês sabem que fiz uma tentativa de pedir desculpas a dois usuários do Recanto das Letras. Escrevi um texto, Pedido de Desculpas a Dois Usuários do Recanto das Letra, enviei um e-mail para um deles pelo contato disponível no site. Não sei se o e-mail foi para o spam, se ele não viu ou simplesmente ignorou. Tudo leva a crer que meu pedido de desculpas foi ignorado.
Isso é uma pena, porque saber perdoar é uma das virtudes mais bonitas do ser humano.
Eu já devia presumir isso, dado o histórico do autor a quem pedi desculpas. Em um texto dele, ele mencionou não aceitar o pedido de desculpas de Cuca por um episódio de abuso cometido anos atrás, que destruiu a vida de uma jovem suíça. Na ocasião, achei o pedido de desculpas de Cuca genuíno e fiquei com a impressão de que, se realmente houve arrependimento, ele poderia ser um aliado no combate à violência contra a mulher. Mas o autor viu o gesto como uma pantomima.
Seja como for, o meu caso não chegou nem perto da gravidade desse episódio. Mas, de certa forma, a reação dele mostra uma certa intransigência, um modo cristalizado de ver o mundo. Isso talvez seja símbolo do pensamento de parte da juventude que se diz progressista, mas que, na prática, é enormemente influenciada por discursos retrógrados do politicamente correto. Muitas vezes, isso os torna mais reacionários do que aqueles que eles combatem.
Esse é um problema comum na juventude mais militante à esquerda no país. Falta flexibilidade, falta abertura ao novo, ao debate. Muitas dessas pessoas foram forjadas nas universidades a pensar da mesma forma, absorvendo um discurso excessivamente marxista, que, ao meu ver, é anacrônico e não funciona bem em nossa sociedade pós-moderna.
É preciso ser mais fluido, como a transmodernidade exige, e, sobretudo, estar disposto a estudar sempre, presumindo que ainda não sabemos nada.